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Havia um silêncio incomum na casa do poeta. Uma casa pequena, quase sem móveis. Branca por fora, amarela por dentro. Lá dentro, os livros ocupavam o espaço deixado livre pela vida do poeta. Que era quase todo. Vivia na casa, mas nunca escrevia na casa. Escrevia sempre no café. Sempre no mesmo café. No café central da praça central da pequena vila.
Sentava-se à mesa, quase sempre a mesma, e olhava a rua e as pessoas que passavam e os cães que deambulavam sem sentido algum, aparentemente. As árvores e os pássaros. Olhava tudo longamente e depois escrevia. Longamente. Olhava e escrevia, sempre nesta ordem. Se olhava depois de escrever, era para escrever depois deste último olhar. Nunca saltava olhares. Nem escritas. Uma ordem que lhe ordenava o pensamento e fazia organizar a própria vida.
Tomava sempre o mesmo: um café e um pastel de feijão, no início da manhã; um galão e uma torrada, no início da tarde.
O dono do café e os empregados eram os seus únicos amigos. Trocavam as palavras indispensáveis para cada situação e sorriam às vezes. Poucas vezes. O jornal, a televisão, o tempo, algum cliente atípico regiam a conversa.
Quando o verão chegava e a esplanada se enchia de gente nova, nova em relação ao lugar porque de idades era muito diversa, alegre e risonha, vinda das grandes cidades, fixava gestos, movimentos dos membros, visíveis, claro, esgares e tiques. Mas o que mais gostava era de se fixar nas bocas que falavam e riam e silenciavam. Era um gozo: lábios, dentes, línguas, comissuras sincronizadas na comunicação sem som. Por pudor, retirava os olhos sempre que o seu olhar se cruzava com outros olhos. Apanhado em flagrante delito, escondia os olhos nas palavras sobre a mesa. Os dias quentes eram dias de trabalho intenso e penoso.
Quando o Sol desaparecia atrás do bairro e a luz esmorecia, despedia-se dos amigos de todos os dias e regressava à sua pequena casa quase sem móveis. Todos os dias os mesmos dias. Todos os dias novas palavras.
Uma tarde, em que se fixara nos lábios vermelhos e carnudos de uma mulher, que achou bonita, palavrosa e de fácil gargalhar, falando sem parar com um homem sombrio, na esplanada quente, os olhos da mulher pousaram, momentaneamente, nos seus. Não conseguiu retirar os olhos a tempo, e a mulher sorriu-lhe. Ruboresceu abundantemente e, nesse, dia, regressou a casa mais cedo.
Sentado num banco de pau a uma minúscula mesa de metal, escreveu um longo texto de amor.
PS1 – Nós, que nada podemos e nada queremos anunciar, suspeitamos que o longo texto, iniciado naquele cair de tarde, foi o preambulo de um romance como nunca ninguém tinha escrito;
PA2 – O poeta que nunca tinha publicado obteve, e isto é factual, um retumbante sucesso com o seu romance, publicado por numa das mais prestigiadas editoras da nação.Nesse ano, abandonando a pequena casa branca, o café da cidade de província e os amigos de sempre, percorreu em triunfo o habitual circuito de festivais literários levado em ombros por pares e leitores em geral.
Monte Gordo, 26-6-2018
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