(...) Do fundo dos tempos ergueu-se uma voz cavernosa, do fumo e da genética, reverberando fundo nas almas de cinco crianças, à procura do mundo, desafiando o medo. Recuámos. Sem nos mexermos do sítio. Pregados ao chão, num só corpo. Quem está ai? Quem por aí está? Uma pausa no tempo infinito repousa na tarde. Lembrando a representação do corpo imóvel. Petrificado. Somos nós, queríamos falar consigo, ouço-me sem ousar pensar nas palavras que ainda teria que inventar. Representando um todo que era a parte mais significativa e pequena do universo. Do todo que transcendia a tarde. Nós e o desejo de alcançar a serenidade da perceção. A irreversibilidade do devir. O silêncio apodera-se do desassossego fazendo recuar a linha de fronteira que nos separa do resto da vida. O desassossego que precede a força dos elementos.
Entrem. Chicoteando a instalação do sonho convocado nas inúteis diagnoses dos sentidos. Um lapso de eternidade interrompendo o fio que nos liga ao futuro. Desviei a rede que nos separava da voz necessária. A porta dava diretamente para uma ampla sala repleta por uma penumbra cinzenta e húmida. Pesada. A luz difusa que entrava pela rede da porta de entrada retirava as cores da existência. Sentado a uma mesa quadrada sem cor estava um homem velho envergando um capote escuro como um dia chuvoso de inverno.
Sentem-se. Apontando para um sofá de napa da cor de tudo.
(...)Nenhum de nós tinha alguma vez visto aquele homem fora da penumbra desta casa. Esta era uma experiência iniciática. Só os eleitos aqui tinham entrado, e os que noutras delegações para o mesmo efeito aqui tinham estado, transportavam a sua imagem de colosso das sombras. Desde os cinquenta anos que não saía de casa, ou pelo menos nunca mais fora visto fora dela. Um homem distante dispondo do poder de controlar o mundo. O tempo e a singularidade do destino. Um homem sem idade manipulando a vontade de viver, o desejo de estar só. O desejo de alcançar as trevas sem rosto, de unir a luz à escuridão que nos espera na idade do fim. Todos sabemos quando nascemos e assomamos à claridade dos tempos que ninguém conhece o tempo da morte. Nem os suicidas. A morte escolhe o seu tempo. A sua evocação era suficiente para colocar qualquer mortal em posição defensiva. Contam-se milhares de estórias sobre as suas façanhas à luz dos dias. De outrora. A sua força descomunal, as bebedeiras monumentais, as suas conquistas no misterioso mundo das fêmeas. Mito ou realidade. Ninguém o poderia testemunhar. Os amigos por cumplicidade. Os outros, por medo. Medo do futuro. Ali estamos nós, crianças à beira do precipício, tentando estabelecer contato com o inalcançável. Com um manipulador da ilusão. As moscas que tinham ousado acompanhar-nos na delicada penetração da sombra dançavam no ar morno da sala. Rodopiavam no pó invisível, desenhando trajetórias inconsequentes como pinceladas de pintor iconoclasta. A brusquidão de alguns desvios às órbitras regulares anunciava o final dos tempos, dos seus tempos, e impediam a descodificação da grafia desenhada. Sentámo-nos na borda do assento tensos e inquietos.(...)