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Ontem fui a um funeral. Quando era novo não ia a funerais. Toda a gente que morria me era distante e, mesmo os falecidos da minha aldeia, vagamente conhecidos. Lembro-me de só ter ido aos funerais dos meus avós e de um amigo colega de turma do quinto ano (quinto antigo). Aliás minto! Fui, como todos os rapazolas da aldeia, a alguns funerais de soldados mortos na Guerra Colonial. Nem os conhecíamos. Só lá aparecíamos para ver as salvas de honra (?) em memória dos, por certo pensávamos nós, heróicos lutadores e para colhermos as cápsulas que saltavam das G3, que depois utilizávamos nas nossas guerra particulares. Ainda hoje estou a ver os caixões, devidamente selados, ladeados por garbosos soldados que, metralhadoras apontadas ao ar, disparavam em honra dos
“ mártires da pátria” enquanto as cápsulas das balas(?) saltavam em todas as direcções.
Depois, à medida que fui envelhecendo e entrando naquela que apelidam de “meia idade”, comecei a reparar que os falecidos cada vez me eram mais próximos e mais queridos. Comecei a “acompanhar até à última morada” alguns. Como acompanhava a minha mãe nestes pequenos cortejos, a conversa, o caminhar conjunto e a companhia, qual saliva canina de Pavlov, começou a ronronar-me docemente no cérebro. O encontro com velhos amigos que não via há muito e até umas cervejolas que bebíamos no final do ritual, também era gratificante. E cá estou eu um regular frequentador de funerais. Não tanto como o Presidente da Câmara e da Freguesia, ou como a maior parte dos habitantes das aldeias da zona, mas não falhando um cortejo em que um amigo ou pessoa que me toque o coração, seja o “corpo”.
Assim foi ontem. O Francisco era um velho pescador que, não obstante a diferença de idades (20 anos) sempre tratei por tu. Desde menino que o fazia sem a menor exitação. O Francisco morreu anteontem. De cancro galopante. Felizmente, que esta ceifeira costuma alongar o sofrimento até aos píncaros da humilhação corpórea. Para ele e para todos, que eram todos, os que tinham a honra e o orgulho de o ter como amigo. Nunca casara e vivia com uma irmã também solteirona. De um humor corrosivo, quando deixava os amigos, depois de umas noites de copos, dizia que tinha que ir pois o marido estava à espera. O marido era a irmã, está bem claro de ver. Homem do mar, com profundas rugas cavadas na face e a cor dos homens das ondas, era muitas vezes escolhido como modelo de pintores que vagabundeavam nas margens da Ria Formosa. As suas histórias, quase sempre as mesmas, eram infindáveis. Nasceu numa casa junto às águas e na mesma deixou de respirar. Quando, por velhice e crise das pescas, se tornou um “mestre de terra”, passava a maior parte dos seus longos dias sentado na marginal de Cabanas olhando os aspectos dos tempos: dos ventos e do mar. Adivinhava os “Levantes” e quando acalmariam as investidas irregulares do “Norte”. Adorava conversar e mesmo com o seu humor difícil, não se lhe conheciam inimigos.
Ontem, quando subia a íngreme ladeira que nos leva da igreja ao cemitério ( a minha mãe desta vez não aguentou toda a subida, os 40 graus à sombra não aconselhavam brincadeiras), ia ouvindo as suas histórias sobre os homens do mar, sobre os barcos, a pesca e o tempo. Cá atrás no pelotão ia revendo os homens e mulheres que comigo subiam a ladeira. Conhecia-os a todos. Talvez não me lembrasse já dos nomes de muitos. Uns que tinham andado na escola comigo, outros com quem tinha jogado à bola, com outros tinha calcorreado os bailes da vizinhança, com algumas tinha namoriscado. Dos mais velhos tinha aprendido a ir vivendo, com as suas histórias e conselhos. Vi também que os pescadores, a maioria dos acompanhantes, já não usam as conhecidas camisas aos quadros. Será que é por ser Verão e estas serem de flanela? Reparei também, e pude compará-lo com os não pescadores, que não havia pescadores gordos. Todos secos e rugosos. O padre, velhinho e doente, também era um meu velho conhecido. Foi o primeiro a ter televisão na aldeia e onde se juntava todo o povo em ocasiões especiais tipo Festival da Canção. Foi até meu professor de História algures no tempo. Todos a evidenciar o fluir do tempo. Menos cabelo, mais curvados, mais ornamentados de óculos, menos dentes e os problemas de saúde de pobres e velhos. É sempre uma alegria ver o Rui, meu ídolo, que defendia as balizas da terra ainda aos 40 e muitos, com o cabelo todo branco e com o aspecto de um velhinho simpático, ou, ainda no futebol, o Juanico, dos grandes defesas centrais de Tavira (com quem ainda tive a felicidade de jogar) a arrastar-se encosta acima para levar um amigo até ao fim. Ao fim do bio, não do ser. Esse resistirá enquanto os que o seguem cá andarem. O Zé Armindo, o maior armador aos pássaros do Universo, com uns óculos fundo de garrafa que não lhe permitem distinguir uma cegonha de uma lambreta. E para terminar a olhadela pelos amigos de sempre, deixem-me dizer-vos que ali vem o mestre Mário, pai do meu amigo Mário. É uma sombra do homem alegre que sempre foi. Arrastando-se com dificuldade à entrada do cemitério, faz-me vir, finalmente as lágrimas aos olhos. Quantas gargalhadas em conjunto, as pescarias, as petiscadas… A velhice é terrível e só se aproveitam a beleza dos rostos e as recordações de outrora. Era bom que me convencesse que era de outra forma porque caminho para lá. Mas não tenho ilusões este fim não é como no filmes americanos. Só nos resta o acompanhamento dos amigos. Na vida a e na morte.
Esta é a minha gente. Eu pertenço a este mundo onde cresci e aprendi tudo o que sei. O Francisco continua a ser um dos meus. Do nossos!
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