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Há que destacar; e só quem não tem competências para desocultar o que está por detrás do que ocorre na sombra da memória o poderá pôr em causa; as consequências brutais do teu gesto. Não será nunca desprezível o elenco de citações que podem interpretar e avaliar a brutalidade da ação.
Eu que conheço a imprevisibilidade do comportamento humano, que aprecio a diversidade e até comungo contigo o prazer da mudança, não sei como a magia dos princípios pode canibalizar o estertor do fim. No meu caso, é a mudança exterior ao pensamento que me habita o cinzel transformador da alma.
Quando vieste até mim, percorrendo o caminho insensato dos sentimentos de antanho, irradiando clareza na confusão inata da nossa vida, reconheci de imediato que nunca tinha sido a ausência a explicação da separação. A proximidade física é uma fonte de mal entendidos. A lonjura atómica potencia a exaltação dos afectos incorruptíveis. Não há distância na solidão. Nem solidão absoluta na imensidão das terras habitadas pela criação cultural.
O teu gesto, que emergiu na noite, é uma aclamação silenciosa e triste. Um salto na vacuidade do sonho, na cumplicidade da mecânica amorosa adjacente.
Sabes o que convoca a dor e almeja a sabedoria, a sabedoria dos relapsos altruístas. Sabes onde a lança penetra as fragilidades da alma. Onde se alojam os trovadores da realidade inatingível, os que conhecem os limites insondáveis do efémero retorno.
Quando o desejo é concorrente doutro querer, rejeitado pelo corpo carente, o parecer favorável da multidão é soberano e requer a impossibilidade do despojo total.
O gesto que ostentas perante a minha inquietude não inscreve a violência que transporta, na carne devoluta que te ofereço. É essa brutalidade do gesto: a violência que desejamos não encontra o alvo do desejo que sempre procurámos. O medo inviabiliza o desejo, ampliando a dor da paixão inerte.
Alguns não desconhecem o que se revolve sob a coberta que esconde da curiosidade sagaz da multidão, os murmúrios do resvalar delirante dos tempos. Serão esses que, um dia, gravarão o gesto na memória do futuro.
Monte Gordo, 19 de Julho de 2010
Já não era sábado, mas também ainda não era domingo. A hora mudara agora mesmo, como sempre acontece quando a estação das carraças se inicia.
Isto perturbava o camaleão acinzentado como noite incompleta:não as carraças, que não lhe interessavam para nada, não lhes apreciava o sabor acre, nem a crocante quitina, e não tinha problemas com a sua agressividade doentia. E a amabilidade era-lhes, aliás, correspondida: não as atraía o sangue frio e a pele viscosa.
O que o preocupava, realmente, era a imprecisão do tempo. Se a noite avançava como sempre. Se a liquidez do devir se transmutasse na ciclicidade prescrita. Se a noite, inexorável, regia o sono merecido dos que, como ele, usavam os dias para manter os corpos e garantir o futuro.
Procura sem a ânsia
de seres grande, procura sem cessar
o que não entendes.
O que não precisas. As sementes dos santos.
Levanta-te ao encontro da solidão honesta
e vã, desenha em ti a podridão do novo
como como se tudo emergisse
das ideias confusas da singularidade,
dos caminhos já trilhados
por outros, da cegueira obscena
e sôfrega de sangue virginal.
O que encontramos são murmúrios
só entendíveis a iniciados nas longas
procissões de vagabundos
à procura
das areias escaldantes, da nauseabunda e escarlate
mãe de todas as dores. As dores que apoquentam os mortos.
Murmúrios conspirativos renegando o passado
perdido atrás de paredes transparentes,
o oculto transgressor rompendo
o discurso básico dos profetas. Enigma
de antanho onde a memória
emerge dos pés mergulhados em cerimónias
do esquecimento, escaldantes, brasas rasgando as vestes
dos risos alarves, xamânicos, onde os rostos
de cadáveres orgulhosos são possuídos
pelo medo convulso das tardes. Procura os que te
arrastam até ao fim das sombras do desejo.
Monte Gordo, 3-11-2016
se o ódio se adianta
e te prescreve a dor,
doma-o e sai para a rua,
grita como se o labirinto
que as flores desenham
no torso da nuvens
se rasgasse
em cicatrizes invisíveis
ao sentido dos duendes imorais,
grita até sentires
o eco das paredes
te atirarem no precipício
da carne a latejar de desejo
se o ódio persistir, enraivecido,
regendo os medos e as sombras,
sai do teu corpo e abandona
o odor crepuscular,
o rumor brando das entranhas,
deixa-te levar por entre as casas
do lugar, por entre a claridade
que atravessa os dias
tatuados nos sonhos incandescentes
do profeta desconhecido
estranhos tempos estão encantando
o coração das cidades, as guelras dos peixes
emergindo das redes sociais,
saudando o ódio que nos enforma
e conduz, as esculturas de lixo
rasgando a pele de animais degolados
ao entardecer, sangrando palavras
Se dormisses como dormias antes de ter atravessado o rio que dividia a tua juventude do resto da tua vida, serias capaz de entender os sonhos que agora se recusam em aparecer nas sombras da noite. O que quer que fosse, não te traria a juventude de volta.
Em silicon valley os colaboradores de unicórnios dormem em autocaravanas à porta das startups para não perder tempo entre a casa e o trabalho, tomam pastilhas e tabletes para não gastar o tempo com refeições alienantes, trabalham, até, de fraldas para dispensar a frequência das insípidas casas de banho. Em silicon valley os teclados de computador têm triliões de espécies de vírus, bactérias e ácaros e os dedos dos criadores de sonhos e crenças para incréus rendilham figuras com os neurónios desassossegados, não passam de viajantes sem destino e sem memórias. Em silicon valley o inglês é a língua que fenece nos lábios fechados, ali se ergue, na rede que globaliza, a nova e indestrutível torre de babel, ali convergem os infelizes que inventam o novo mundo e programam o homem novo. Em silicon valley os logaritmos contagiosos rastejam nas redes sociais. O homem novo vomitado sem revolução, o homem digitalus, o homem tornado robô e desligado da natureza perversa em que o tigre devora a ensanguentada gazela. Em silicon valley os homens e as mulheres não fodem a não ser nas férias, que são raras e só quando a depressão é grande e a felicidade espreita. Masturbam-se com as mãos que se perdem nas teclas indigestas das máquinas e nos ecrãs tácteis. Em silicon valley, e no resto do vale, que é o resto do mundo, o amor foi esquecido e anda pelos abismos das noites sem néon à procura da humanidade cruel, continuando a errar e a apavorar o homem novo. Para que tudo seja perfeito e que as consciências atinjam o paraíso é preciso conquistar o sono: o capitalismo só será a vida, a vida inteira, quando a humanidade permanecer em eterna vigília. Em silicon valley os vermes, cookies divinos, governam o mundo a partir de intrusos que passeiam na tua cabeça. Não deixes acabar a noite fria.
Hoje, o dia será tão grande que ainda não nasci.
Foi hoje mesmo que Timoteo introduziu a 12.ª corda da lira
E o menino Mozart, depois de ter tocado cravo de olhos vendados para a corte aparvalhada, pediu Maria Antonieta, futura rainha
de França, em casamento (quando voltou a Paris já homem, ninguém lhe ligou peva).
Possivelmente o dia nem terminará enquanto não desceres até ao teu mundo interior,
À grande sombra da solidão dos outros. Poderá vir a ser o dia em que utilizarei
a inutilidade como meio de transporte até ti. Chegar a ti sem chegar a lado algum.
Fui lendo e interpretando a linguagem das nuvens refletidas no fundo do mar para passar o tempo que restava no dia dos dias. Sou o homem fantasma e viajo de mota
Pela estrada do pensamento pré-cartesiano, onde tudo pode existir sem existir e as personagens mais reais são as que nunca passaram de sombras ténues duma luz irreal.
Só a mota, sem mim, parece atravessar o emaranhado de vias, viadutos e túneis que M. C. Escher gravou a fogo nas minhas mãos. Sou o homem fantasma que vive nas páginas de Ovídio. Argonauta a caminho da Geórgia na procura do manto sedoso que nos há de trazer a riqueza inesgotável. O homem que previu o que aconteceria quando Einstein pusesse
a potência no C da fórmula das fórmulas: bocejou e foi dar um beijo na mulher, que sorriu como a Mona sorriu pela primeira vez a Leonardo.
O dia, como nos esquecemos tão facilmente das coisas desproporcionadas, avançou bruscamente (só por isso o percecionámos) anunciando o meu nascimento ao final da tarde. Quando nasci, já Nietzsche vivia na minha cabeça, depois de ter conhecido o cavalo de Turim e de ter adormecido na véspera do dia que nos transporta até hoje.
O chicote sibilino do cocheiro de VERDI lambeu a calote visível, the other side of the moon, do meu cérebro e fez-me navegante no dia que não tem fim.
Há água, outras vezes fogo, muitas vezes fogo, na frente de um pente saltando à corda no quintal
de um parente de província.
Uma máquina de café ampara uma faca e uma colher…
Tiro um café e a faca reage
ameaçadoramente fazendo-me a barba à escovinha.
Não sentes o odor a pintelho que sopra do 1.º andar?
Tomo o café… a sombra das cigarras
envolve o pescoço das liceais leitosas e púberes. Gostosas!
Moças sem rosto, de mamas sentadas na maldição
da poeira incandescente.
O problema não é com os sacanas, com os que saltam
de costas para os precipícios da fé, é-o com
Os que acreditam que são tão bons quanto
Os que dançam nus na tempestade, os que roçam
O vento e naufragam nas noites de sangue.
O café desaparece, frio, no quintal do meu tio-avô
E as malabáricas proezas do pente transferem-se
Para o cabelo rebelde da maresia que emerge
Das sombras das cantoras da tarde.
De barba aparada e penteado cruel, saio para
A vida que me espera no comboio sem fim.
Na leitura da cidade ensandecida,
Os carros apodreciam na palidez dos subúrbios
Enquanto, aí, as mulheres comandavam o mundo
A partir de tijolos empilhados nos dorsos
Das encostas íngremes, que ninguém quis e agora
Toda a gente quer. As mulheres abandonadas gerem
O invisível dos dias, e parecem felizes. Felizes por carregarem
Os filhos pelas lamas das ruas ensandecidas. Os homens
Dormem sobre cadáveres mornos de ontem e escaldantes
De amanhã, dormem sem sequer sonhar, até no sono,
Leve e inquieto, são escravos da tristeza. As mulheres riem
Mesmo quando choram, mesmo quando os mortos lhes vêm bater à porta
E pousar nos braços robustos. Os homens dormem. Adormeceram
Depois dos tiros que ecoaram no ricochete das paredes escalavradas
E incompletas. Adormeceram depois da incontinência verbal das armas.
Dormem no medo eterno exibindo a ignorância que os cobre
E separa do real onde habitam de costas para a luz. As mulheres
Tecem a luz, manipulam o fora e o dentro, fazem café na escura
Podridão para servir os amantes, buracos dentro de buracos,
Pais dos filhos dos pais, mães do vazio que as enforma, máscaras saindo de túmulos prenhes de entes poliformes e frios.
Criaturas doentes escorrendo sangue dos corpos purulentos,
Desaparecendo nas valetas cegas da cidade.
(…) E as mulheres saem de casa caminhando sob a chuva,
Desejando ser putas e morrer numa página de um livro de fadas.
Na assombração dos limites do desejo.
Nas casas em construção, o sofrimento foi a primeira pedra.
Cativa
6/10/2017
Sim, depois das pernas cansadas e do rosto desfeito pelas inclementes investidas do vento, das chagas rasgando os pés, cheguei ao lugar. Queimei os sapatos no aquilino promontório e voltei para onde sempre pertenci.
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