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Talvez fossem seis da madrugada quando a mulher chegou a casa, velho apartamento na Venda Nova, subúrbio de duas cidades. O filho dormia o sono profundo da adolescência. Pousou a mala no sofá da sala, e foi beijá-lo com lágrimas a esmagar-se no chão cheirando a alfazema. Meteu-se debaixo do chuveiro e desapareceu na nuvem de vapor que consumia o cheiro a tabaco e homem da noite inabitada. Nem o espelho refletia a luz do corpo cansado, enquanto se envolvia num roupão que fora azul. Vestiu-se na madrugada final e fumou um cigarro na kitchenete dum sétimo andar qualquer. Fumou outro e esperou demoradamente o esplendor da luz do dia que se adivinhava. O despertador digital rompeu o silêncio dos afetos, atirando à triste rigidez das paredes debotadas a música dos dias sem sentido. Pôs-se a fazer torradas e aqueceu o leite. Retirou a lata de chocolate em pó da chaminé.
- Aníbal, Aníbal, são horas. O odioso nome do pai. – Aníbal… vem…vem…
Sentaram-se nas cadeiras plásticas e, sem medo do amor, ele percebendo tudo. Ela sentindo a noite a ocultar-se na vida. Aos dezasseis anos já se compreende tudo, talvez como nunca mais alguém o possa entender. Sairam no Ford Fiesta para a procissão dos que não têm nada a perder e perdem tudo. Para, arranca, para, arranca e as palavras cumprem o tempo antes do princípio: o labirinto das vozes.
- Aqui mãe, deixa-me aqui. A escola ficava ao fundo da rua em movimento. Parou o velho automóvel em segunda fila e um beijo ecoou nas memórias dolorosas duma casa com gritos. Viu-o descer a ladeira com a mochila às costas e, mais ao fundo, encontrar um grupo de amigos. Riram até os deixar de ver para lá dos portões da escola.
Meteu a primeira e, de olhos baços, dirigiu-se ao balcão do centro de emprego. Um homem que a tinha olhado demoradamente chamou um táxi e, para felicidade do condutor, viajou para longe.
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