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O cadáver bordeja as águas
mornas sussurrando aos amigos
desconhecidos (…), as sombras alongam-se
como serpentes à babuja dos
barcos em decomposição. Navega cadáver
sem rumo que não a podridão indiferenciada
do silêncio das câmaras nupciais, enfunando
as velas latinas do desejo febril,
das peripécias da noite.
Só a ingratidão redige e soletra
o obituário do rebelde que se solta
entre os colapsos da assistência
multitudinária dos que cumprem
os deveres sombrios, os desejos de arenque
fumado contradizendo
os magmáticos murmúrios da ignorância,
os boatos aspergindo as cabeças coroadas,
inalcançáveis, golpeando os peixes
que se levantam na direção do cadáver
desavindo,
à deriva na solidão dos cosmos.
Há mortos incómodos no sótão
da vizinha, esqueletos dançando
na caudalosa poeira das impolutas
lamas incandescentes. Dançando
como crianças sem consciência dos riscos
que da consciência se libertam, se soltam
amarelecendo nos campos de sangue
onde a paisagem fede a nobreza
e lealdade. Féretro que o povo
venera lambendo o cu dos celebrados
heróis de antanho, tecendo a pele que o amortalha
e prende às correntes ígneas das palavras. Só um
cadáver compreende as solicitudes
dos poderosos, as calmarias rangendo nas
cabeleiras sorridentes da apostasia.
A sua caminhada sem destino rasga
as atómicas partículas do corpo, rejeitando
um lastro de perfume acre
no condomínio espectral dos mestres
que conduzem as aprendizagens castradoras
dos peregrinos, o conhecimento inútil da verdadeira
Sabedoria.
O cru transcende a cozedura e as confusões
serão lavradas no epitáfio do cadáver.
A fogo e água.
Cativa, 7/7/2014
Hoje o dia pareceu-me enevoado
e a juventude foi-se-me sentar
entre as cãs e os longos silêncios dos peixes.
O meu filho disse-me, depois de uma ligeira
altercação, sem olhar o meu corpo
esparramado comodamente no sofá, tenho lá culpa
de teres atingido a andropausa. Amei e estive
3600.000 dias sem dizer uma palavra.
O banco onde depositava as minhas parcas
poupanças faliu. Fiz sexo com o candeeiro
da mesa-de-cabeceira que teimava
em não se acender quando pretendia ir mijar
pela calada da noite. Mil vezes. O prejuízo
do meu banco foi de 3600.000 de euros –
bem maior que o meu, está claro
(pobres banqueiros) -, e eu acho que não escaparei
à morte em 2040. O metano e o dióxido de carbono
farão o trabalhinho de forma absoluta sem
recurso à metafísica. O Tribunal Constitucional,
em que acreditava piamente, ditou
que o roubo aos pobres estava claramente
dentro da moldura penal consignada na lei
Suprema da nação. Quando os senhores doutores
juízes acordarem será tarde de mais. O fim da humanidade
em 2040 foi ontem. Vi, ainda agora, um homem beijar a pata de um cão.
O gesto, sincero, comoveu-me e o meu ventre estrebuchou
chamando a atenção da vizinhança que ruborizou levemente.
O antigo primeiro-ministro, o antes deste,
foi acusado de corrupção no mês passado.
Defendeu-se dizendo que no mês passado já não era primeiro
nem nada na classificação dos entes candidatos a comprar
o Novo Banco. O que renasceu das cinzas do meu banco, entretanto falido.
Acabei de alcançar o nível 4 num jogo on-line e perdi o resto que tinha ganho
à sueca com a rapariga do rés-do-chão direito. Era uma madrugada
clandestina a que me esperava. O nevoeiro escondia-a num poema
de ideias controversas. A andropausa mental
é muito mais perigosa do que a biologia. Toda a biologia.
Estando esta última por provar que aconteceu.
O maldito candeeiro da mesa-de-cabeceira tira-me
a tesão toda: só se acende quando quer e eu a espumar
toda a noite. Sinto as articulações cansadas (tendinites?)
só de pensar em 2040. Tomo um chá de galafito com um
placebo qualquer para enganar a ansiedade e elejo a melhor praia da Europa:
Praia de Cabanas!, como nunca poderia deixar de ter sido.
Só por acaso estarei vivo em meados de 2040. Se não me engano andarei pelos…
2040 – 1958 = 82 posso até assistir no you tube
à minha própria morte. Até, talvez, editá-la.
Desconfio mais da crueldade do metano do que na do dióxido de carbono.
O CO2 é-me muito chegado. Nada de científico, é uma intuição
Que me empurra mais para o metano. Cheira-me a Inferno.
O que pensará o Tribunal Constitucional do fim do mundo?
Poder-se-á considerar o fim do mundo inconstitucional? Até,
anticonstitucional? Nisso não acredito, o fim do mundo está para lá
das jurisdições humanas. Da moldura do Criador. O que só revela
da insanidade geral dos homens e da fraudulenta misericórdia de Deus
para com os banqueiros espeleólogos. É-me insuportável
assistir ao bailado das meretrizes míopes escaldando os pés
no palco de metal que a música consome.
Para entender a convergência da economia paralela,
e mesmo, ou talvez, sobretudo, a perpendicular, na direção dos paraísos fiscais
que pululam de Manila às Ilhas selvagens, da Micronésia de Malinowski
à Macaronésia de Alberto João Jardim, dirigi-me
ao meu psiquiatra e estendi-me no divã
à espera das sombras que envolvem a luz intermitente
do meu candeeiro de mesa-de-cabeceira. Da redenção inicial.
Revelou-me que o meu sono estava desenhado segundo
os padrões internacionais aceites pela Internacional
Socialista e que o humor que transportava
no inconsciente podia muito bem ser fruto
de um resquício de festa de anos celebrada
em Chefchauen em 2004. O perigo, continuou,
seria sempre o de me calar sem antes rejeitar
a simpatia que me ligava ao FMI e esquecer
os dias passados a percorrer as sedes dos bancos suíços
a tentar abrir cofres com um canivete multiusos.
Poderia nem chegar a 2040 e atingir a eternidade antes
do tempo gravado na coronha da espingarda
do meu tetra avô que agora, por acaso, é minha.
Despedi-me atenciosamente e, retribuindo a simpatia,
o clínico não me levou dinheiro pela consulta.
Parti dali em transe semi-induzido e as insónias
que o tempo adivinhava fizeram de mim
um zombie até aos dias preliminares a 2014.
O nevoeiro apoderou-se da tarde de verão
confessando aos turistas que o suicídio era um privilégio
de banqueiros. Quando a luz do candeeiro de mesa-de-cabeceira
inundou de luz o quarto, atravesso a andropausa e,
para sempre jovem, sento-me na cama à espera de 2040 a ler as aventuras
do cavaleiro da triste figura.
Cativa 31-07-2014 (anos do Guapo)
a lâmina cinde a carne
abre como cicatriz abismo
nos lábios entreabertos o sangue
preenche a fenda profunda
afogando a dor dilacerante
os mornos momentos
da planta de pedra
que fumega na planície
inundada
conflito latejante
na exatidão dos arrepios
da noite dançando
na convulsa e febril
paz da morte.
Hei, you, gritou o cão. Aquele bonacheirão de cor de pêssego a quem tinha saído o euromilhões.
Do outro lado da rua, a galinha que perdera um olho na guerra olhou-o franzindo o sobrolho.
O que é que se passa?, condescendeu cedendo à simpatia.
Queres fazer-me um broche?, atirou o outro sem constrangimentos.
Não fosse a arrogância com que o perguntas e o desconhecimento que nos separa, e responder-te-ia que com o bico que me dá brilho às faces poderia ser perigoso executar tal desejo. Assim, só poderei, e digo isto com toda a sinceridade, mandar-te tomar no cu.
Dito isto, continuou o seu caminho, bico apontado ao futuro e dois dedos fora dos sapatos.
Foda-se, ganiu o canídeo, já ninguém respeita o dinheiro. E ainda dizem que é o sistema capitalista o principal responsável pela crise. “Tomar no cu”, repetiu baixinho, “tomar no cu”, quem não tem o dito não o devia invocar. A cloaca não dá tesão. Irei gastar o meu pecúlio para outras paragens onde a simpatia me possa dar dividendos. Depois não se queixem da fuga de capitais.
E lá foi, debaixo do céu que o alumiava.
M. Gordo 19/12/13
Não creio em silêncios
crus, em conversas iluminadas
calçando a brutalidade dos
parágrafos cadastrados.
Não creio nas palavras grávidas
atiradas aos pesadelos
dos interlocutores,
não posso convidar quem parte
a loiça de minha casa
e amola lâminas
no fundo da consciência
solúvel, na poeira dos
caminhos.
Aceito o desafio das cordas
envoltas em arame farpado,
golpeando as sombras, as
fímbrias dos edifícios
castrados, a limpidez
dos corpos omissos fedendo
a cadáver exibido nas
cerimónias panegíricas
latindo na agonia dos
políticos imberbes
e escorregadios
que as noites abreviam
no sôfrego espetáculo
das multidões corruptas,
envenenando o cemitério
das idiossincrasias
incandescentes.
Não creio nos sonhos
Que se erguem da noite
Perpétua.
M. Gordo 5/12/13
Lutando contra os elementos. Andrajoso mas sempre em pé....
Como estás mudada, disse-me o vizinho enquanto se regalava com a visão ímpia do meu umbigo.
Rastejei na planície do fogo, atropelando as respostas que a denúncia do peixe anunciavam, interpelando de chofre o cão sem pulgas internado há séculos no manicómio dos gritos impossíveis.
Onde estavas quando precisei de ti, quando o vento soprou do quadrante das sensações inúteis?
O vizinho voltou à carga:
- Como te sentes antes de entrar no corredor sombrio que leva ao coração?
Fiz-me desentendida e tricotei, compulsivamente, uma camisola de lã de minotauro. Senti-me lâmina rasgando a noite, poeta partilhando o sangue corrompido, fábrica de invernos indisponíveis.
Não encontrei ninguém que gritasse a tristeza das palavras cruxificadas em páginas amarelecidas, ninguém que se mostrasse triste com a ausência honesta e fria das catacumbas. Deixo-me ficar no porto à espera de um navio fantasma. Era o dia das oito espadas cindirem o que restava do país lamacento, das cobras, o dia da emergência do mal, dos desejos iniciais.
Quando o primeiro navio se aproximou do cais onde adormeci exausta, um peixe, vindo do fundo das trevas do abismo, de cabeleira ensanguentada, escorrendo pus viral, assomou à tona das águas e disse-me olá.
Acordei estremunhada e sorri. Quando regressou às profundezas do mar azul, pareceu-me ver nele o meu vizinho acenando à castidade efémera do desejo.
M. Gordo 10/11/13
O homem que nunca tinha sonhado perguntou:
- Que silêncio é esse que te gela os ossos.
A resposta, seca e corrosiva, que recebeu da rapariga sem imaginação, soou como uma praga de libelinhas.
- Quem não distingue a realidade da metáfora nunca chegará ao castelo do homem velho.
E assim se passaram muitos crepúsculos.
Um dia, igual a tantos outros, o homem que nunca sonhara sentiu-se feliz e compreendeu o significado daquele silêncio oco, que esmagava como sombra cobrindo as pegadas dos pássaros, a consciência atulhada de sonhos dos outros.
Levantou-se e não conseguia caminhar. Esqueceu-se de como dar passos na direção da noite. Quando um pé abandonava o outro, um desequilíbrio inexplicável tomava conta do seu andar, impedindo-o de ir em frente.
Agora, inerte na luz, a rapariga dos silêncios sentirá que a vida é um sonho na periferia dos pesadelos da solidão.
apresentem-se as facas e os garfos, e os gargalos do vinho novo,
recomendados pelas casas de pasto antigas
e todos seremos nada no intervalo
das coisas - algo que se agiganta nas solenidades invulgares do esquecimento -,
nada na imensidão
apresentem-se os candidatos a artistas
convidados, artistas entre artistas,
todos os que se arrastam
na efemeridade dos tempos entre a vida
e a morte, a genética das volumetrias disformes
que derrama a cortina de lágrimas
incandescentes na matriz do sexo digital
(os últimos devem ser sempre
substituídos segundo a previsão meteorológica
atempadamente indicada para os locais a visitar
e a legislação revogada nos anos pares)
e todos seremos nada no intervalo das coisas
nos dedos impróprios agonizando
na imprecisão da pele lavrada,
esquecendo os porquês da contradição
dos dias caídos. quem iludir os encantadores de incautos
escavadores de vocábulos malditos
será entronizado monarca do reino das traições serenas:
primeiro entre sombras de um mundo desaparecido;
depois navegante sem mar, albatroz rasgando o vazio
o calendário não conduz os passos
na direção da penumbra...
VRSA
4/9/13
(acabadinho mesmo agora, depois de uns dias de aflição, cá vai sem revisão nenhuma...)
O sexo dos anjos
O anjo só tinha uma asa e isso incomodava-o. Voava aos supetões, para baixo e para cima, como um pardal. A elegância própria do voo dos anjos era-lhe estranha. Por inimaginável que soe, tinha nascido assim. Nascer, para um anjo, já é uma aberração. Os anjos são, por natureza (sic), eternos e por isso inascentes e imorredoiros. Aquele anjo, este, não só tinha nascido, e por conseguinte faltava-lhe o infinito à posteriori, como o tinha feito sem uma asa. Se seria imortal só o devir nos traria a resposta. Acreditamos que sim: a vida libertá-lo-ia do padecimento final.
Quando o vento soprava irregular e violento, o problema do voo tornava-se deveras complicado. Chegava a parecer uma folha de árvore à deriva nos ares, rolando sobre si próprio, parecendo, a todo o momento, que se iria despenhar. Dir-me-ão os leitores, sábios na complexa matéria da aerodinâmica do voo, que só com uma asa nem um pássaro voaria. Nem o mais leve dos fuinhas. Mas, meus amigos, a matéria que compõe os anjos não é a mesma que nos acompanha a realidade. Não sendo por isso suscetível a interpretações através das fórmulas e modelos físicos que interpretam o movimento e explicam as suas trajetórias. Ninguém alguma vez pôs em causa a ascensão da Nossa Senhora. E que eu saiba a virgem senhora não estava municiada de apêndices alados. Um sequer. Subiu e pronto. A propulsão da ascensão nunca foi referida como impossibilidade de viagem. Ascendeu e nada há a discutir. Aliás, um dogma não se discute. Este anjo voaria mesmo que não tivesse asas. Como a Nossa Senhora, Jesus Cristo ou o mais pragmático Maomé. Também não consta que o Espírito Santo, que tem as asa regulamentares – sempre duas, as use nas suas deslocações. Alguém já O viu batê-las? (para evitar confusões, alerta-se os leitores para que nos referimos ao bater de asas e não de outras batidelas que o espírito crítico sempre associa a “batê-las”) Sentiu a deslocação do ar do batimento da envergadura? Então por que duvidam das capacidades voadoras desteanjodeumaasasó? Aceito a desconfiança no abstrato. Mas se eu o afirmo é porque é verdade. Este nosso anjo voava! Aos supetões, mas voava. Ia a todo o lado e não recorria às pernas para grandes caminhadas. Ultrapassava todos os obstáculos terrenos recorrendo ao voo. Como qualquer ente alado. Percebido!?
Mas a sua tristeza consumia-lhe os dias. A risota dos outro anjos escarnecendo do seu voo, era insuportável. Nem pareciam anjos. Os anjos são anjos. A essência do bem e do bom iluminando o mundo. Os homens por quem estão encarregados de velar. O mundo visível e invisível; real e espiritual. (num aparte que me deixa envergonhado como escritor, quando escrevo a palavra espiritual lembro-me logo de bacalhau espiritual, mnham,mnham) É certo que o Diabo era um anjo que foi destituído por malvadez intrínseca e imortalidade ímpia. São as exceções que confirmam a regra., diria, para manter a reputação das criaturas que medeiam entre os homens e os deuses. Também a este nosso amigo anjo estava vedada a guarda de humanos. Que diria um pecador terreno ao facto de ter um anjodaguarda sem uma asa? E o mais grave, sei-o de fonte segura, é que os próprios arcanjos tapavam a cara com a asa à sua passagem. Riam para dentro envergonhados. O nosso anjo desesperava com a risota dos seus pares e superiores. Um dia tomou uma decisão drástica. Resolveu partir para longe. Se é que há longe ou distância para os anjos.
Abalou pela calada da noite, aproveitando uma reunião geral convocada pelo arcanjomor para tratar de assuntos respeitantes a uma nova conceção de competências para o desempenho da função de anjodaguarda - como estava liberto desta incumbências não tinha sido convocado -, caminhando pela estrada que levava ao mundo dos homens. A irregularidade do voo poderia chamar a atenção dos anjos de guarda. De guarda dos anjos, neste caso. Já lhe doíam os pés e as pernas quando parou para descansar da caminhada. Sentou-se numa pedra na margem do caminho. O crepúsculo cobria toda a extensão à sua volta. Massajou as pernas e os pés e recomeçou a caminhada. A falta de uso entaramela as estruturas, lentifica a ação. Estugou o passo rasgando a escuridão, renovado pelo descanso. A fronteira estaria, pelos seus cálculos, já descontada a pouca experiência em atividades pedestres, ao cair da noite. A decisão era de alto risco. Tinha-a ponderado longamente e a decisão tomada estava bem alicerçada na longa reflexão. Atravessar a fronteira para o mundo dos homens significava uma viagem sem regresso. Desde que o Paraíso tinha sido extinto, por incumprimento de contrato por parte dos moradores de tão aprazível condomínio, que anjos e homens nunca mais conviveram irmãmente. Pouca gente sabe, mas o Paraíso foi mesmo extinto. Expulsos foram Eva e Adão e toda a pandilha de anjos e arcanjos e seus semelhantes. Homens, para as rudes terras das sombras. Anjos para junto do senhorio de todos e de tudo. Ainda hoje não está esclarecido o papel dos anjos nas desventuras do primeiro casal aquando da precipitação no pecado original. Segundo fontes esptéricas geralmente bem informadas tudo não teria passado de uma questão de lutas fratricidas e fracionárias entre anjos por questões de poder. Políticas de anjos, diríamos hoje. Bem, deixemos estas complexas manigâncias, se bem que muito interessantes, de assuntos politico-teológicos. O que aqui nos interessa são as aventuras e desventuras de um anjo solitário e rejeitado que arriscou a sua vida para renascer. Que ousou recomeçar a partir do nada num mundo hostil e desconhecido.
A luz da madrugada inicial já inundava o vale que separava o mundo dos anjos do mundo dos homens. Ainda hesitou antes de transpor a fronteira. Era o tudo ou nada. E o nada aproximava-o de si próprio. O tudo do mundo anterior ao nada. Entrou. Nesse mundo onde não havia significado nem significante. Onde a razão de existir não existia. Nada tinha explicação e só a morte parecia impor alguma ordem na vida dos homens. Uma capicua existencial.
Entrou, decidido, sabendo que nada voltaria a ser o que tinha sido. Compôs o casaco grosso e comprido, cobrindo a mono asa, e avançou pela estrada silenciosa que penetrava o bosque vizinho. Depois de algumas horas de caminhada, sentiu-se, pela primeira vez, livre como nunca o fora. Ouviu um ruído de motor a aproximar-se. Um camião velho e desengonçado evoluía lentamente ao seu encontro. Estendeu o polegar direito apelando à boleia. Um marreco dos grandes, pensou o camionista enquanto se preparava para refrear a viatura. Para onde, perguntou parando junto ao caminhante. Para onde, repetiu o anjo. E para onde vai o senhor? Para a aldeia da mina. Não que lá more, vou carregar minério para levar à grande cidade. Pode ser, atalhou o anjo sem entusiasmo.
Até Ferrarias, assim se chamava a aldeia da mina, não trocaram uma palavra. Quando finalmente o distinto camião se deteve estremecendo convulsivamente, entraram na taberna que dominava a praça central e beberam duas aguardentes de figo. Finada a convivência, apertaram as mãos e despediram-se no mesmo mutismo da viagem.
O anjo tinha as coisas bem pensadas. A aventura tinha riscos eminentes e consideráveis. Mas, desde o longo casaco de lã aos passos a seguir depois de instalado, tudo estava registado num roteiro mental longamente congeminado. Escolher um nome, encontrar uma morada, arranjar uma ocupação. Forjar uma identidade, uma biografia credível. Depois, só depois, viria o passo mais arriscado e complexo. O extirpar da asa e, assim, um novo nascer. Ângelo. Era um nome vulgar e ao mesmo tempo mantinha-lhe um halo da sacralidade de antanho. Instalou-se numa velha pensão, num quarto esconso e barato com vista para o enorme monte de escombros junto à entrada da mina. A ganga dos dias. Com uma facilidade inesperada, conseguiu trabalho na mina. Seria mineiro. Escavando as entranhas da terra. As profundezas labirínticas da escuridão. Para um anjo, habituado às elevações etéreas, seria uma experiência dolorosa. Mas que o levaria ao lugar do homem mais rapidamente do que qualquer outra profissão. Grandes tormentos atiram-nos para o centro das realidades. O centro da Terra.
O trabalho era duro e sujo mas mostrou-se o ideal para os primeiros tempos de vida num mundo novo. O frio das profundas galerias permitia-lhe trabalhar sem retirar o estranho casaco. Os colegas de trevas eram pouco faladores e, ainda menos, curiosos. A dureza do trabalho não se ajustava a muita festa pós-laboral e, portanto, a dar nas vistas. Até para o varrimento visual que os anjos fizeram a toda a região nos dias seguintes à fuga, se bem que nada pudesse ser feito para o levar de volta, a não ser através da palavra engenhosa e sugestiva, as profundezas das velhas galerias eram impenetráveis. Estava seguro num ambiente instável e perigoso. Os proventos amealhados serviriam para atingir o último objetivo a concretizar no sentido da integração total. Andava, não diríamos feliz, sossegado. Os mineiros são pessoas reservadas e menos curiosas. Pouco se interessam pelas vidas dos que com eles esgravatam as profundezas. As entranhas da litosfera. Se a princípio o inchaço proeminente que empolava o velho casaco tinha estranhado a alguns – havia mesmo quem tivesse notado ondulações da relevante corcunda -, o que é facto é que não tinham passado de leves e efémeras especulações. Na escuridão labiríntica, na rudeza do trabalho, quem quererá lá saber de marrecas movediças. O espírito de todos preocupa-se, sobretudo, com o inimigo número um dos mineiros: o grisu assassino. E bastava que um dos rouxinóis deixasse de cantar para que todos ficassem de sobreaviso. O medo invadia as estreitas galerias e retesava os corpos. A pele seca colava aos ossos e o inferno era uma visão mais aterradora que a mais aterradora realidade da superfície. Talvez até por uma questão de proximidade. Portanto, ali não havia tempo a perder com frivolidades. Ali as especulações deambulavam, quase sempre, pelos mais importantes assuntos da filosofia ocidental: a vida e a morte.
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