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Deu-me uma branca e esqueci o meu nome. A mania
que imaginara enquanto enfiava a roupagem
do lobo mau, fez-me detestar as cócegas que os filmes
de polícias e ladrões me presentearam.
Na ginástica, ninguém saltava mais alto que eu, dizia catapultando
o corpo por cima dos automóveis engarrafados.
Deu-se-me uma branca e o queijo que roía, distraído, não
me sabia a nada.
Olá!, atirou-me o anúncio da pepsodent. Gosto
de gajas e a mulher do sorriso branco desafia-me
os instintos que adquiri na selva. Foram baratos
e, por isso, voavam sobre rios e precipícios. Às vezes
era preciso ser campeão de espeleologia para aceitar os convites
da vizinha antes do anoitecer. Mal transpunha a porta
via a loira pepsodent e esquecia-me da vizinha boazona
que me outorgara o convite. Começada a brincadeira
com a outorgante; que não tinha olhos azuis, nem cabelos loiros,
nem sorriso uniformizado; ficávamos tão felizes que os corpos nus
pareciam saídos de um documentário sobre lontras no pacífico sul,
ou de uma telenovela mexicana em tempos de crise.
Grandes tempos aqueles! O que dava pena era ver o marido
e o papagaio a brincar às gaiolinhas enquanto esperavam o jantar.
Queres ir ao circo?, perguntou-me ainda o papagaio antes
da minha saída pela escada de incêndios.
Não, obrigado, e… boa noite senhor doutor.
Pareceu-me entristado, o cumprimentado anfitrião e vizinho
dedicado: o trabalho de doutor devia ser um bocado chato,
concluí, puxando o fecho eclair até acima.
A vizinha atarefada controlava os tachos quentes
na cozinha nublada.
Deu-me uma branca e nem sequer a minha identidade reconheço.
Aliás o que vira na televisão era uma mancha branca
Por entre os lábios da confusão.
MG 19/5/2011
ela sorriu transportando a paisagem
que reforça o intervalo entre o fim e o
princípio num lago de nudez abreviada
sorriu e chamou a pertença consagrada
nos limites, parceria indisponível transcrita
no lugar, dúvida importada, preconceito inicial.
O escuro manso dissolveu a responsabilidade
em escaramuças militantes, entendimentos da viagem
desvalorizada, última dissolvência impaciente
perdendo o consenso na distância coreográfica.
o sorriso da mulher que percorre o olhar
ingrato da única vitória dos abstencionistas
curiosos, maioria significando a aposta
nas flores, diz-nos da crueza do obstáculo,
da dor na noite recuperada da berma do caminho,
legitimidade do pesadelo indocumentado,
metade da dor marginal, sorriso do poder
que se eleva nas faenas do sexo consumidor
dos corpos raivosos e sectários,
discurso ressentido e parcial.
A atenção do outro não reflete o estado
de embriaguez vazia que conduz
a relativização da evidência, transformação do novo
interpretando a inocente figura que emana
do sorriso absoluto.
gere a desorientação responsável pelo ruído
da alma vestida de palhaço incompleto,
reduz o exemplo da hierofânica verdade dissoluta
no lodo evidente, sonsura dominante nas cicatrizes
do calor, da insânia sedimentada nos ritos
do calendário social que alguém parodiou
no equilíbrio sem paixão dos convertidos, explicação
corrosiva no pó que se eleva nos atalhos
petrificados da memória.
ela sabe como podar as ideias
que se desprendem do oculto sabor a derrota,
mutilar o chão onde navegamos à vista
e contendemos com os ossos que se erguem do tempo.
ela é um implante na paralisia do medo,
na arte de inventar placebos, paixão
na imensidão do caos.
sorri e não colhe. As manadas assentam
os cascos na viscosa película dos afectos.
MG 25/1/11

Dizes sempre alguma coisa antes de contemplarmos o sorriso
da chuva a lamber a vidraça. O cabelo envolve
as palavras frias das pessoas sem ritmo musical
continuando a viajar na lucidez das ausências nunca anunciadas.
Dizes o que não traz nome, chave postiça que viola a explicação
simples na revelação da leitura impune, quando
interiorizas o eterno guião da mudança.
A tua responsabilidade no crescer do esquecimento
assume-se como rejeição do tempo intransponível. Somos
aquilo que o olhar procura, aquilo que desaparece na mecânica
do desejo acomodado.
Rejeitas o que dizes antes de o dizer, exiges a rara leitura
da distância, o sopro do discurso que éramos na
ocasional confusão dos corpos enlutados.
Nenhuma agressividade se liberta do que dizes
na acomodação do desejo, na rigidez dos significados
das palavras murmuradas que nos explicam a legitimidade
da insensível brusquidão da loucura.
Podemos dizer, sem exprimir a acomodação dos sentidos,
a irrecusável notícia do mensageiro apocalíptico que nos
surpreende enquanto paradoxo reunido à mesa
dos esqueletos brumosos da comunidade.
O sorriso da chuva é uma ameaça à necessidade
exasperante dos sinais exteriores de melancolia.
Dizes e não ouves.
(Monte Gordo – 23/11/10)
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