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"Quase todos nós tínhamos, até então, resistido ao choro: quando, porém, o vimos tomar o veneno e que esvaziara o copo, não pudemos mais. A mim as lágrimas corriam-me em fio; e, velando a face, deixei-as livremente correr, lamentando não tanto a Sócrates, como o meu próprio infortúnio por ver-me privado de um tal companheiro. nem sequer fui o primeiro, porque Críton, ao não conseguir refrear por mais tempo as lágrimas, tinha-se posto a pé e afastado, e eu segui-o; e nesse momento, Apolodoro, que havia estado sempre a chorar, irrompeu num sonoro pranto que fez de todos nós cobardes. Apenas Sócrates manteve a sua serenidade.
Que estranho clamor é este? Mandei embora as mulheres para que não pudessem causar tal desconforto, porque ouvi dizer que um homem deve morrer em paz. Façam silêncio, então, e tenham paciência.
Quando o ouvimos falar assim, tivemos vergonha e sustivemos as nossas lágrimas, e Sócrates caminhou um pouco mais até que, disse ele, as suas pernas começaram a falhar, e deitou-se então de costas, e o homem que lhe deu o veneno olhava de quando em quando para os seus pés e pernas; e passado algum tempo, pressionou com força o seu pé e perguntou-lhe se o conseguia sentir; e ele disse que não; e depois a sua perna, e cada vez mais para cima, e mostrou-nos que ele estava frio e rígido. E ele próprio o sentiu e disse:
Quando o veneno atingir o coração, será o fim.
Estava a começar a ficar frio em redor das virilhas, quando descobriu a cara, porque se tinha coberto, e disse (e estas foram as suas últimas palavras) - disse ele:
Críton, devo um galo a Asclépio. Lembrar-te-ás de pagar a dívida?"
Platão,Fédon, Diálogo sobre a Imortalidade da Alma.
PS: Depois de mais uma tragédia em Atenas, vou ali tomar a minha cicuta e não me chateiem nos próximos dias.
PS2: Espero bem que o Vieira não se esqueça que também deve um galo... aliás uma capoeira inteira, aos crentes nO Glorioso dos gloriosos, nO Maior entre os maiores.
PS3: Foda-se.
Por momentos o pânico varreu as chancelarias mundiais. Já não bastavam os terríveis dossiês do Iraque, do Irão, da Coreia do Norte, do Paquistão e da crónica confusão israelo-palestiniana e eis que o centro do turbilhão parece instalar-se em Portugal. Sua Santidade, o Dalai Lama, encontra-se em vias de reencarnar durante a sua visita à Câmara Municipal de Lisboa: Os dois extremos da Eurásia , China e Portugal estão prestes a entrar num conflito de proporções inimagináveis.
Mas voltemos um pouco atrás. Quando os governantes chineses souberam que na agenda do Sr. Tenzin Gyatso se encontava uma deslocação a Portugal, sorriram e ligaram ao presidente em exercício da União Europeia a relembrá-lo que recepções oficiais já se sabe como é de outras visitas, com outros protagonistas. Que não haveria alterações , foi a resposta. Este assunto é um desígnio nacional, reforçou. É só mais um probleminha , veio do extremo oriente. É que o dito cujo anda por aí a falar na reencarnação e isso colide com os nossos desígnios nacionais" (ih,ih ,ih , pareceu ouvir-se do outro lado do mundo, talvez problemas de comunicação decorrentes de tão longas ligações ). Nós já proibimos a sua transmigração para outro corpo no nosso país mas o descarado diz que isso não constitui problema porque, vivendo ele no estrangeiro, a proibição não o atinge, o ingénuo. Já fizemos algumas propostas irrecusáveis a certos países no sentido de impedir a reencarnação do indivíduo por essas bandas. Até agora só obtivemos respostas positivas que muito nos sensibilizaram e como tal a nossa amizade far-se-á sentir para com esses amigos distantes. A porta das nossas casas estará escancarada à sua visita. Gostaríamos de poder contar também com a vossa compreensão lembrando que os nossos povos mantêm uma relação de mais de 500 anos e que, com certeza, se manterá até ao fim dos tempos... Mas em absoluto, outra decisão não poderia ser tomada no âmbito de tão longa e intensa amizade que une os nosso países. Mandarei imediatamente o Magalhães exarar o decreto, obviamente secreto, a proibir a reencarnação de Su ... do Sr. Gyatso . Aliás darei ordens ao Magalhães que contemple qualquer tipo de reencarnação no nosso país. É uma honra poder falar com um amigo tão desinteressado e agradecer desde já a intervenção desse grande português e referência da humanidade esse navegador aventuroso que por cá passou (outra vez se pareceu ouvir, ih,ih , ih) o grande Magalhães . Não é es ... Não se incomode que por essas alturas a reencarnação não estava na ordem do dia e quem o quisesse fazer que o fizesse. Parece que o vosso Magalhães o fez sucessivamente e com sucesso. Adeus.
Escusado será dizer que o Magalhães não era o Magalhães mas sim o discreto, porém eficaz, secretário de Estado da Administração Interna. Tão eficaz que já tinha o decreto pronto ( o seu domínio do mundo cibernético fazia-o tratar por tu as agendas dos mais variados e destacados protagonistas da cena mundial) e só esperava a ordem do chefe para o carimbar e assim lhe dar validade. Só que a decreto secreto poucos têm acesso. Mesmo sabendo que em Portugal quanto mais secreto mais descoberto.
Regressemos à Câmara Municipal de Lisboa, onde é recebido o Dalai Lama com pompa e circunspecção pelo eufórico presidente e pelos entusiasmados vereadores Sá Fernandes e Helena Roseta. É certo que a cerimónia estava a ser manchada pela falta dos vereadores do Partido Comunista (também tinham recebido um telefonema de longe, de bem longe...) e do procedimento desinteressado do vereador Carmona.
Alguns dos presentes (diria mesmo muitos) conheciam o teor do secreto despacho do diligente Magalhães mas estavam descansados: quem iria escolher Portugal para a reencarnação do século. Outro palcos mais apetecidos se perfilavam para acolher tão mediático e significativo evento. Tudo calmo.
Eis que Sua Santidade, sem ninguém o poder adivinhar, se envolve numa espiral de empatia com António Costa. Uma torrente energética, um magnetismo poderoso e incontrolável envolve os dois. Uma auréola de santidade já envolve um apatetado presidente da edilidade e quando o Lama glorifica a voz do autarca muitos pensam que tudo está perdido. Telefones tocam em imponentes palácios pelo mundo fora. Malas com botões poderosos abrem-se em bunkers invioláveis. Sócrates; na Polónia , sua a bom suar enquanto explica o que se passa a dois apalermados gêmeos e tenta contactar o legislador fiel. Consegue finalmente. Vai a caminho do local onde uma luz poderosa envolve edifício camarário e pessoas que participam na cerimónia das cerimónias. Entra, qual bombeiro destemido, pela luz, sobe de um só fôlego as longas escadarias e entra, cego pelo clarão branco, no amplo salão nobre. Pestanejando empunha o decreto salvador e interpôe-no entre a Santidade que se esvai e a Santidade que insufla. A corrente quebra-se,a luz intensa esmorece e tudo volta ao que era antes de ter sido.
Ouve-se apenas a voz pausada da única Santidade presente, desejo-lhe os maiores êxitos nas próximas eleições . O Sr. Presidente tem uma voz fabulosa.
Magalhães retira-se com a sensação de dever cumprido, só isso. Na Polónia os gêmeos assentem finalmente na assinatura do Tratado Reformador. Sócrates retoma o ar distante e frio. Magalhães será feito comendador no próximo dia da nação. O Sr. Presidente de todos os portugueses não dorme em serviço.
Atenas abafava em calor. Por debaixo de uma frondosa oliveira, Sócrates, parecendo zangado, perorava sobre tudo e sobre nada. Mais sobre nada. Que o conhecimento a isso levava...
Um jovem, que pela primeira vez o ouvia, seguia-lhe as sinuosas palavras, as impenetráveis ideias e as parábolas flamejantes. A maior parte dos discípulos acompanhava-o distraidamente passando, de tempos em tempos, pela confortante anestesia do sono.
"... todas as pessoas feias são criminosas e de mau carácter..."
Esta frase bateu fundo na consciência do contemplativo jovem que atirou sem pensar:
- Mas o senhor é feio e bem feio...."
A interrupção gritada ecoou na praça geométrica, os seguidores regulares acordaram agitados e a própria oliveira se agitou gemendo ao vento.
O jovem, assustado, encolheu-se em si mesmo atrofiando-se no tempo. Os presentes focaram o olhar no filósofo, esperando a resposta iracunda do mestre.
Sócrates olhou longamente o jovem e, sorrindo, disse:
- Eras o único que me ouvia neste dia tórrido de Atenas. A tua interrupção foi um dom nesta tarde do fim e do principio do mundo. E tens toda a razão. Eu sou das piores criaturas que se passeiam no mundo de Zeus. Sou mau como todos os homens maus que foram e que irão ser. No entanto escondo e oprimo a minha maldade e ajo como a melhor das ovelhas de Zeus!
A praça, geométrica, respirou de alívio e mesmo a temperatura pareceu ceder ajudada por uma suave brisa vinda do Egeu.
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