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Corredores Habitados

por vítor, em 09.05.23
Uma viagem à memória do que resta nos dias que passam. Um presente intenso, tortuoso e belo desligado do tempo. Dos tempos. Onde o bem e o mal, o inestético e o estético, a moral e a ética, se banham, fundem e confundem, em dança teleológica, numa sopa que escalda os lábios do leitor. Carregando vidas que se expõem como se nunca tivessem existido. Mas, mesmo assim, flamejantes, traçando caminhos que bordejam as perigosas paredes dos abismos. Dos penhascos por onde caminhar nos rouba, oculta, a vontade de exibir o desejo. O desejo da morte!

Um dos mais impressivos e espantosos livros que li nos últimos tempos.

Os Corredores Habitados, Adão Contreiras, edição Associação Casa-Museu José Pinto Contreiras, Gorjões, 2022.

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publicado às 00:49

Dizias: éramos eternos. Conduziam-nos os ventos. Ouve as letras do Dylan que fundem

almas mortas. Quantas vezes pediste aos ventos a carícia das tempestades? Quantas vezes sentiste a espuma da maresia a trepar pelo corpo até te aspergir o rosto incendiado pelo Pôr-do-Sol?

A mulher caminha à beira do precipício. Lá em baixo, o mar entrega-se à inútil, e eterna, luta contra os penedos escuros que desenham a costa irregular. As espumas trepam os rochedos procurando as fendas irrepetíveis. Brancas, azuladas; liquefeitas, evanescentes e vaporosas. Elevando-se até atingir as bordas sinuosas das falésias. A mulher ardendo!

Para quem caminha nas tortuosas linhas do abismo, o espetáculo é deslumbrante. Magnético. O Sol esmorece tombando devagar na massa azul-cobalto que se estende até ao fim do mundo. Desenha uma estrada de luz a caminho do fim. Do fim dos dias, princípio das noites. Das noites eternas. Doces e inalcançáveis por quem pretende descansar da vida atormentada de outrora. O passado funciona como o lastro que nos liga à vida e impede a fuga dos dias vindouros.

Dali, as aves planam de costas viradas à vida. Flutuam de asas abertas, suspensas na nortada que tudo move. Envergaduras diversas adaptam a plumagem ao fluir do humor das aragens. Gaivotas gritam na tarde que se esvai.

A mulher caminha devagar. Os pés calcam a areia dos trilhos calcados por outros com um cuidado inusitado. Deixando pegadas suaves na superfície granulosa. Marcas que não durarão mais que minutos, padrões geométricos de umas sapatilhas de marca. Aqui e ali, baixa-se. De cócoras, e observa a vegetação rasteira, colhe uma ou outra flor e leva-as ao nariz. Às vezes à boca. Cheira-as e morde-as, mastiga-as, como botânica experimentada. Volta a caminhar contornando as rochas que afloram do caminho. Os cabelos e o vestido branco, incomum, agitam-se adaptando-se às flutuações da barometria. Às linguagens do vento. Lá em baixo, muito em baixo, o mar avança contra a verticalidade da rocha. Avança e retira-se, para voltar a avançar, esverdeado, libertando a espuma que não pertence ao sólido nem ao líquido. Alguns rebordos estão resguardados por cercas de madeira. Toros grossos protegendo transeuntes distraídos ou ariscos. Ou possuídos das duas características.

Encosta-se a um espesso travessão. Olha a paisagem campestre que morre na penumbra que se impõe. A diversidade desaparece na sombra do entardecer. A sul a Serra de Sintra ergue-se, violeta, com o castelo dos mouros rasgando a noite. Navio imponente coroado por um palácio grotesco. Gávea de amores certificados e furtivos. Etéreos e efémeros. Volta-se para o mar. O Sol baixou aproximando-se da linha do mar que toca o céu. Já nada impede a sua contemplação. Os olhos absorvem o dourado das águas e enchem-se de lágrimas. Lágrimas de ouro escaldando, escalavrando, o rosto. A memória que se desvanece enquanto filme cronológico (ou só lógico) enformando a existência.

Alguns batólitos emergem e voltam a mergulhar no tempo sem fim atingindo, caoticamente, o pensamento que se estilhaça. Criam-se e desfazem-se como a espuma que se liberta das ondas.

Ultrapassa a barreira protetora e aproxima-se da beira do abismo. Do abismo que se estende pelo silêncio da cratera hiante. Que asperge de lonjura as mnemónicas linguagens do prazer.

A imensidão do mar enegreceu e cresceu e estende-se, espesso e denso, até ao longe do mais longe.

Cheira as flores que colheu. Concentra o olhar na negritude do mar.

As últimas aves suspensas atravessam a penumbra virando costa à vida A espuma do mar recebe sem par. Quantas almas serão precisas para compor a melodia do que nos traz serenidade?

Na face da mulher entrevia-se a tristeza dos dias de antanho. Só o cair da noite desnudava as rugas que lhe cicatrizavam a alma.

Parou, subitamente. O pensamento avançou, alguns diriam, recuou; como luz na escuridão, até algures no passado. Um lugar onde jazia um homem no chão indefinido da paisagem. O sangue que encharcava a poeira breve refulgia na tarde que o amor apagara.

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publicado às 17:32

(...) Do fundo dos tempos ergueu-se uma voz cavernosa, do fumo e da genética, reverberando fundo nas almas de cinco crianças, à procura do mundo, desafiando o medo. Recuámos. Sem nos mexermos do sítio. Pregados ao chão, num só corpo. Quem está ai? Quem por aí está? Uma pausa no tempo infinito repousa na tarde. Lembrando a representação do corpo imóvel. Petrificado. Somos nós, queríamos falar consigo, ouço-me sem ousar pensar nas palavras que ainda teria que inventar. Representando um todo que era a parte mais significativa e pequena do universo. Do todo que transcendia a tarde. Nós e o desejo de alcançar a serenidade da perceção. A irreversibilidade do devir. O silêncio apodera-se do desassossego fazendo recuar a linha de fronteira que nos separa do resto da vida. O desassossego que precede a força dos elementos.

Entrem. Chicoteando a instalação do sonho convocado nas inúteis diagnoses dos sentidos. Um lapso de eternidade interrompendo o fio que nos liga ao futuro. Desviei a rede que nos separava da voz necessária. A porta dava diretamente para uma ampla sala repleta por uma penumbra cinzenta e húmida. Pesada. A luz difusa que entrava pela rede da porta de entrada retirava as cores da existência. Sentado a uma mesa quadrada sem cor estava um homem velho envergando um capote escuro como um dia chuvoso de inverno.

Sentem-se. Apontando para um sofá de napa da cor de tudo.

(...)Nenhum de nós tinha alguma vez visto aquele homem fora da penumbra desta casa. Esta era uma experiência iniciática. Só os eleitos aqui tinham entrado, e os que noutras delegações para o mesmo efeito aqui tinham estado, transportavam a sua imagem de colosso das sombras. Desde os cinquenta anos que não saía de casa, ou pelo menos nunca mais fora visto fora dela. Um homem distante dispondo do poder de controlar o mundo. O tempo e a singularidade do destino. Um homem sem idade manipulando a vontade de viver, o desejo de estar só. O desejo de alcançar as trevas sem rosto, de unir a luz à escuridão que nos espera na idade do fim. Todos sabemos quando nascemos e assomamos à claridade dos tempos que ninguém conhece o tempo da morte. Nem os suicidas. A morte escolhe o seu tempo. A sua evocação era suficiente para colocar qualquer mortal em posição defensiva. Contam-se milhares de estórias sobre as suas façanhas à luz dos dias. De outrora. A sua força descomunal, as bebedeiras monumentais, as suas conquistas no misterioso mundo das fêmeas. Mito ou realidade. Ninguém o poderia testemunhar. Os amigos por cumplicidade. Os outros, por medo. Medo do futuro. Ali estamos nós, crianças à beira do precipício, tentando estabelecer contato com o inalcançável. Com um manipulador da ilusão. As moscas que tinham ousado acompanhar-nos na delicada penetração da sombra dançavam no ar morno da sala. Rodopiavam no pó invisível, desenhando trajetórias inconsequentes como pinceladas de pintor iconoclasta. A brusquidão de alguns desvios às órbitras regulares anunciava o final dos tempos, dos seus tempos, e impediam a descodificação da grafia desenhada. Sentámo-nos na borda do assento tensos e inquietos.(...)

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publicado às 17:05

Últimos - um romance sem fim

por vítor, em 09.05.22

Do mestre do autoplágio...



"A minha vida foi, quase sempre, que o sempre é uma abstração, uma procura. A inquietude que nos devora impeliu-me a rasgar caminhos até um lugar de quietude onde a existência fosse uma continuidade natural. É certo, sabia-o antes de avançar para o vazio, que essa quietude mítica e desejada não existia em lugar algum. E isso fazia-me procurá-la ainda com mais energia e entusiasmo. Sempre que chegava a uma terra que se assemelhava à terra mítica, onde repousava efemeramente os meus ossos, sabia que a tranquilidade que me invadia seria, ela própria, a energia que me traria o desassossego, e me impeliria a partir. A partir persistindo na procura da utopia, no verdadeiro sentido etimológico da palavra, para lado nenhum. O caminho que traçara nas terras por onde passara fechava-se à medida que desbravava novas veredas virgens e não programadas. Indesejáveis e, no entanto, incontornáveis. O regresso, porque muitas vezes ansiava, a memória acenando nos confortáveis meandros da existência longínqua tornava-se, assim, impossível. Só me restava avançar no desconhecido desoculto pelos sonhos de menina. Como a floresta equatorial que se fecha depois de rasgada pelos homens se recompõe sarando as feridas impostas pelo estranho fragor da impossibilidade. E se por acaso trilhasse caminhos já calcados, não reconheceria as pegadas impressas na nebulosidade das superfícies. Já não era eu o eu que ora transportava. Eu, que não recordo os pensamentos destinados ao fracasso, atiro-me sem querer nos inóspitos e pedregosos caminhos da solidão. Não há caminho, como dizia o Machado, o caminho é uma trajetória idiossincrática talhada na vida de quem se apodera de si mesmo. E como só rompe o que contém fragilidade, as membranas mais transparentes, é por aí que o nosso passeio pela eternidade penetra. É por aí que somos conduzidos ao nada. Ao lugar que nos não convém. Voltar atrás é perder os sentidos nos labirintos do afeto. É a solidão couraçada de medo. Só nos resta deixar ir e tentar diminuir os estragos da alma corrompida. A luta não é contra a corrente em sentido contrário, mas sim contra os destroços que a corrente transporta. A fortaleza do labirinto conduz-nos a casa. É aí que nos sentimos bem. Bem como no regaço da nossa mãe.



O cabelo tapa-me a cara. O vento Norte empurra-os, açoitando o rosto, para me esconder de quem passa. À minha frente o Sol desce sobre o mar. Uma estrada de ouro estende-se pelas ondas desaparecendo na luz. Aproximo-me agora da beira do precipício. As aves, de costas, planam na prontidão da tarde. Sobem e descem alterando, minimamente, a posição das penas das asas.

Olho a luz incandescente que me chama. A eternidade das águas anuncia um pesadelo de felicidade nos dias que virão. A enorme bola de fogo desaparece na vermelhidão que a consome e um silêncio, para lá de tudo, impõe-se na noite inicial. E a convergência entre o princípio e o fim principia. Nasce do que finaliza. Enfim. A noite substitui o dia.

Um vento acre e espesso varre o dia. Tudo continuará."

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publicado às 17:03

Um silêncio incomum

por vítor, em 29.06.18


Havia um silêncio incomum na casa do poeta. Uma casa pequena, quase sem móveis. Branca por fora, amarela por dentro. Lá dentro, os livros ocupavam o espaço deixado livre pela vida do poeta. Que era quase todo. Vivia na casa, mas nunca escrevia na casa. Escrevia sempre no café. Sempre no mesmo café. No café central da praça central da pequena vila.
Sentava-se à mesa, quase sempre a mesma, e olhava a rua e as pessoas que passavam e os cães que deambulavam sem sentido algum, aparentemente. As árvores e os pássaros. Olhava tudo longamente e depois escrevia. Longamente. Olhava e escrevia, sempre nesta ordem. Se olhava depois de escrever, era para escrever depois deste último olhar. Nunca saltava olhares. Nem escritas. Uma ordem que lhe ordenava o pensamento e fazia organizar a própria vida. 
Tomava sempre o mesmo: um café e um pastel de feijão, no início da manhã; um galão e uma torrada, no início da tarde.
O dono do café e os empregados eram os seus únicos amigos. Trocavam as palavras indispensáveis para cada situação e sorriam às vezes. Poucas vezes. O jornal, a televisão, o tempo, algum cliente atípico regiam a conversa.
Quando o verão chegava e a esplanada se enchia de gente nova, nova em relação ao lugar porque de idades era muito diversa, alegre e risonha, vinda das grandes cidades, fixava gestos, movimentos dos membros, visíveis, claro, esgares e tiques. Mas o que mais gostava era de se fixar nas bocas que falavam e riam e silenciavam. Era um gozo: lábios, dentes, línguas, comissuras sincronizadas na comunicação sem som. Por pudor, retirava os olhos sempre que o seu olhar se cruzava com outros olhos. Apanhado em flagrante delito, escondia os olhos nas palavras sobre a mesa. Os dias quentes eram dias de trabalho intenso e penoso.
Quando o Sol desaparecia atrás do bairro e a luz esmorecia, despedia-se dos amigos de todos os dias e regressava à sua pequena casa quase sem móveis. Todos os dias os mesmos dias. Todos os dias novas palavras.
Uma tarde, em que se fixara nos lábios vermelhos e carnudos de uma mulher, que achou bonita, palavrosa e de fácil gargalhar, falando sem parar com um homem sombrio, na esplanada quente, os olhos da mulher pousaram, momentaneamente, nos seus. Não conseguiu retirar os olhos a tempo, e a mulher sorriu-lhe. Ruboresceu abundantemente e, nesse, dia, regressou a casa mais cedo.
Sentado num banco de pau a uma minúscula mesa de metal, escreveu um longo texto de amor.
PS1 – Nós, que nada podemos e nada queremos anunciar, suspeitamos que o longo texto, iniciado naquele cair de tarde, foi o preambulo de um romance como nunca ninguém tinha escrito;
PA2 – O poeta que nunca tinha publicado obteve, e isto é factual, um retumbante sucesso com o seu romance, publicado por numa das mais prestigiadas editoras da nação.Nesse ano, abandonando a pequena casa branca, o café da cidade de província e os amigos de sempre, percorreu em triunfo o habitual circuito de festivais literários levado em ombros por pares e leitores em geral.
Monte Gordo, 26-6-2018

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publicado às 16:24

a vaidade

por vítor, em 14.12.17

A vaidade, vanitas, é tão antiga quanto o homem. Tão antiga quanto a cultura. É a figura humana, e não a dos bichos, que aparece mais na arte rupestre. O homem precisa de se ver fora de si para se entender. No entanto, a vaidade, vital para a sobrevivência e reprodução das espécies, tornou-se anacrónica. Ritual de aproximação ao sexo que possibilita a perpetuação de nós próprios, bailado nupcial que nos ilumina e altiva, que nos projeta na cena onde se digladiam os aspirantes à eternidade, rito complexo catapultado pela tesão, virou, nos tempos atuais, um comportamento ridículo, grotesco e desnecessário, contraproducente, na maioria dos casos, nas sociedades globais cosmopolitas e digitais. O pavão de antanho corrompeu o bailado e invadiu, ruidosamente, a aula de ioga. Como a feroz apetência pelo açúcar, que sendo raro na natureza nos impelia sem descanso na sua procura, se tornou um empecilho pois continua a atirar-nos para o doce quando ele se encontra por todo o lado e nos mata pela proximidade, ubiquidade e acesso fácil e, invariavelmente, consumo excessivo. A vaidade não mata mas ridiculariza. O que mais espanta é a vaidade dos que tudo isto sabem. Não arrepia o jovem adolescente acelerando a sua mota ruidosa e levantado a roda frontal em erecção brutal. Não perturba o homem feito saindo do seu Ferrari de smartfhone colado ao ouvido e olhando de soslaio os transeuntes. Não espanta mesmo o tolo que comprou o último grito de farda imposta pela moda e se pavoneia ignorante da troça das elites, que já se passaram para o outro grito. A velocidade estonteante da moda desorienta mesmo os criadores que a repetem à exaustão e tornam moderno o antigo. Paradoxo de ser o ontem mais moderno que o hoje. O que arregala os olhos e arrepia as pilosidades dos corpos é a vaidade refinada de escritores, cientistas e outros pensadores. Na mais lamacenta das fluorescências da luz, vivem encandeados com a sua própria beleza. Criadores e criaturas. Narcisos que resistem ao mergulho nas suas luminosidades reflexas. Quem nunca os viu e ouviu e que por eles foi submerso pela áurea divina, que atire a primeira pedra. Pedra de luz, está claro. Meteorito atravessando a sombra do eleito. Suprema vontade de rir, de enlouquecer com a volúpia de ser. Não há escória que resista a tanta luz do metal em fogo. Fundido e fodido. Criaturas nadando na sua própria espuma inútil. E, destes todos, é o escritor o mais altivo e arrogante: veste-se de palavras inúteis, cria um mundo paralelo onde navega, flutuante e besta, no caminho da glória. É certo que o ridículo e a pobreza moral matam. Mas nem a morte os detém. É a eternidade que os motiva, que os anima e conduz. Quando são bons e criadores de excelência, esquece-se o homem e vangloria-se a obra. Quando medíocres, dão dó, pena. Quase todos se autonomeiam de humildes. De apaixonados eternos. Contradições que nem compreendem: a humildade é, hoje, um valor inflacionado e precioso; a paixão, por natureza – e definição – efémera. São todos solitários, como amam a solidão!, veneram a arte e a cultura, o silêncio, oh, o silêncio!, a amizade, o vinho, as mulheres, e os homens, a natureza, a viagem, a margem, ah, a marginalidade divina!; a volúpia do abismo, as requentadas sombras da noite, os tempos de criança, a lembrança dos melhores pais do mundo, ou piores, que vem a dar no mesmo, o primeiro amor, os cheiros da terra quando chove, a eterna juventude! A amizade – a amizade tornada labirinto e leito de vida e de morte, amizade que azeda e vira guerra sem tréguas e fratricida na hora do confronto. Do confronto das ideias e conceitos estéticos. Ninguém aceita ninguém. Ninguém aceita o outro enquanto outro. Se fores outro iguala a mim, és um outro aceitável e meu.

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publicado às 14:51

a vida sem retorno

por vítor, em 14.12.17

As folhas das árvores cumprem o seu destino. Eu cumpro a vida. A vida sem retorno. Por entre o murmúrio das vozes polifónicas da consciência esculpida no bloco inatingível do passado, talho a viagem sem destino que o tempo transporta para o fim do futuro. O chão pisado fermenta. Quando pensas no corpo – no teu corpo -, abre-se uma cratera de sonho no desejo que te enforma e conduz. Uma exterioridade donde te contemplas como se fosse uma entidade estranha e o teu corpo um fragmento do desejo dos outros. No silêncio da tarde, apodreces e ficas sossegada vendo o futuro a esvair-se nas memórias esquecidas.

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publicado às 14:49

o esquecimento é a vida

por vítor, em 05.03.15

Mais uma página do romance sem fim. "Últimos".

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Há um tempo para tudo. E tudo poderá ser o mesmo que nada. O tempo funde o tudo numa amálgama disforme e primordial. A memória revolve o tempo tentando reconstruir uma narrativa linear e cronológica, partindo da ausência assume a postura de um construtor de mecanismos coerentes que sustentem uma moral para o indivíduo se poder encaixar no coletivo que o arrasta e sufoca nos irrefutáveis labirintos da verdade. O tempo e a verdade, conceitos que se sobrepõem, coexistem na imensa pradaria das falsidades. Se os outros nos convencem que a vida é um fluir de eventos numeráveis e distintos no tempo, o melhor seria deixar de representar o papel que o inconsciente e o determinismo social nos impingem e conduzem pelo infinito que nos enforma. O esquecimento trará sossego e renascimento. O empecilho para este desiderato é a sedimentação dos destroços dispersos no fundo da memória. Quando adormecidos parecem inertes e inférteis, desaparecem sem rasto nos confins da memória. Quando emergem dos estratos pesados, profundos, impulsionados por estímulos incontroláveis e selvagens, rasgando o esquecimento e emergindo à superfície, manipulam a vontade e impõem condutas irracionais e bruscas que nos desenham bailados irracionais e projectam quais sombras teatrais no pano de fundo que se move nas paisagens irreais das traseiras da existência. Não entender os humores dos outros causa desconforto e ansiedade, fecha-nos sobre nós próprios, colapso brutal que nos esmaga. Não entender o que de nós se desprende sem controlo, que aspergimos nas histórias dos outros, pode ser, nos primeiros tempos, confortável por nos revelar a fragilidade dos que se sentem metralhados pela incandescente energia que se liberta; mas, no médio e longo prazo, o seu poder destrutivo levar-nos-á a desistir do que julgávamos ser o caminho dos nossos sonhos. A desilusão perante o enfrentamento com o que de nós é mais visceral e verdadeiro, poder-nos-á fazer soçobrar e desistir de tudo o que, até aqui, construíramos. Conhecermo-nos é destruirmo-nos.
Só o esquecimento nos levará até lugares mais próximos da realidade e, por conseguinte, à vida. Quanto mais escavas em ti para extrair das trevas de ti próprio os fluídos que pensas que irão renovar-te, mais perto caminharás do precipício. E por muito gozo que as vertigens do abismo, do fim, te anunciem tempos de volúpia, de desafio e prazer, a morte ronda os teus passos e o sofrimento apodera-se do teu corpo manipulando o futuro. Manipulando o que pensavas ser a liberdade. E ninguém será mais limitador do livre arbítrio do que tu. O mais difícil será sempre contornar a memória. A vassoura do esquecimento nunca atingirá os recantos mais sombrios de antanho, o que resta impedirá o prosseguimento do caminho ao encontro de ti, as aprendizagens que julgavas libertadoras são, afinal, peias que te castram os tempos que terás ainda que percorrer.

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publicado às 23:47

a ausência recompensa os amantes

por vítor, em 23.01.15

Lê no meu corpo a escritura do silêncio. Navega, sem medo, através da pele fremente. As mãos celebrando os caminhos enquanto vagabundagem no crepúsculo do morno fragor do corpo, planando baixinho, roçando a penugem ondulante. Electrizando o relevo da carne. Da convulsa agonia dos vales incandescentes emerge a voz impercetível que guia as mãos ao magma que brota das entranhas ensandecidas. Embriagada, conduz os teus passos ao sabor das brisas impiedosas do desejo. Cambaleia, erra, pelas pradarias do sonho, entrega-te nos braços anestésicos de quem te recebe em sua casa. A ligeira penumbra que te tolda, mansamente, a vista impede a objetivação dos impulsos primários. Combustível que te atira irracionalmente contra as paredes da loucura. Caminhada sem dor amputando as banalidades putrefactas e entrópicas da loucura. O onanismo canibaliza a vontade dos ausentes, regurgita, convulsivamente, restos da memória que se escapam pelos esquivos e irregulares interstícios da moral burguesa. Quando as mãos se reencontram na praia súbita do ventre, a carne penetrada intumesce e rejeita o corpo estranho, abandonando-se na nudez da poeira difusa desfoca-o no tempo. Everything is out of the time. Agora será o tempo do puro e do cristalino: o vagar da realidade. O retomar das rotações nas roldanas dentadas arrastando as correntes do devir. Será inverno e o frio vem para sedimentar os dias. A sede de visita que nos trouxe aqui aplacará e semearemos ausência na ocupação do espaço que projetas em mim. Será um silêncio sem fim roubando a solidez dos nossos apetites vorazes sobre o outro. O outro que se confunde com o outro e, nunca rejeitando quaisquer identidades, castra e liberta, conduz, sem dó nem piedade, o corpo e alma até os envolver no plasma evanescente da solidão. Um rolo sem fim de sentimentos, de desejos, a explorar até que um dos outorgantes deste contrato efémero e, ao mesmo tempo, eterno rompa as vicissitudes da natureza e se transforme no todo que, mar e fogo, dilui as formas e atira os limites do horizonte para mais longe que o longe. Inalcançável e corrupto. Errante enquanto ilimitado. A pureza não nos transporta a lado nenhum. Ao outro lado das portas. A normalidade é sempre pura. O que se destaca e ilumina, infecta e corrompe, estará sempre nos antípodas do puro e do divino: para o pior e para o melhor. A cerimónia continuará pela noite fora, ululante e repetitiva como são todas as festas, desestruturando, e, depois, implodindo, a comunidade. A comunidade que a sustenta. Dos estilhaços incandescentes, da fusão das poeiras quedas, ressurgiremos, alguns dirão “ressuscitaremos”, envoltos em fluídos criacionais que o sexo asperge. Recompomos, sem reconhecer o horrível que nos rodeia, o que fora nosso e nunca soubéramos. A ausência recompensa os amantes, ofertando uma condensação de tempo que brota, como cogumelos selvagens, através dos poros e contaminam a carne sequiosa de amor.

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publicado às 23:54

De um romance sem destino, "Últimos"

por vítor, em 14.11.14

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Na rua, uma aragem fresca varria as vielas antigas, os transeuntes que as ousavam sulcar nos primórdios da noite derradeira. Como navalha riscando a pedra. O alcatrão amarelecia à luz fosca dos candeeiros generosos, acolhendo as sombras no vazio da viagem. Atravessamos o Largo da Misericórdia e dirigimo-nos, autómatos na noite incompleta, para o tasco da memória antiga. O Estádio estava, àquela hora incomum, com dois ou três clientes dispersos pelas mesas de sempre. Dispersos pela vida de nunca. Bebemos dois medronhos ao balcão e zarpamos, regressamos à luz que amarelece. Pouco faláramos até aqui. Nem uma palavra sobre a tragédia que nos levara um ao outro. Ao reconfortável silêncio dos dias de antanho.
Penetramos no Bairro Alto à antiga. Como o fizéramos sempre. O álcool a latejar nos pensamentos. Felizes e ausentes da realidade. Com a certeza de que não encontraríamos ninguém. Ninguém conhecido como nos tempos da Faculdade. Nesses tempo gloriosos, sobretudo aos sábados, nas ruas, nos bares, nas discotecas, nas tascas, a noite era um templo onde os amigos festejavam a juventude e a loucura. Tropeçávamos em gente conhecida a cada esquina, a cada soluço do tempo. Escorriam as horas em conversas intermináveis, abraços e risos interrompiam a noite e estabeleciam ritos e rituais de aproximação à eternidade. Éramos infinitos e sentíamos o todo como partículas integrantes da imensidão do cosmos. Nas noites intermináveis fortaleciam-se laços de amizade para sempre, procurávamo-nos ansiosamente. A nós e ao outro para sedimentar a identidade do futuro. O sexo era um pretexto para amar. Nada se interpunha entre a alegria e a tristeza. Nestes tempos pré SIDA, a sexualidade impunha os ritmos à vida e a efemeridade dos sentimentos parecia não contender com a força de ir ao encontro das realidades por inventar. Sex and drogs and rock n rol. O que não entendíamos era o que nos moldava a sagacidade da rebeldia. Até ao fim das madrugadas, as dúvidas e os impossíveis fundiam-se numa massa fluída e difusa morna e adocicada, qual sopa genética inicial, penetrando os corpos enlameados e sem fronteiras. Noites paralelas ao mundo que bramia lá fora, enquanto o resto, que era maior do que o todo, medrava silenciosamente nos interstícios do dever. A dança. Ah! A dança! Expulsava os demónios e os deuses e, contaminando o desassossego do conhecido e previsível, fazia emergir do nada um novo sagrado a cada palavra. A cada gesto. O gesto que veio, ainda antes, do verbo. Hierofanias volúveis e sincréticas recriando a formação do mundo. O mundo em si mesmo, uno e diverso como o vazio das tempestades. Todos éramos deuses e não sabíamos. O que para trás ficava, para trás sedimentava nas profundezas dos socalcos do esquecimento. A música amparava o que não tinha sustentabilidade, era a continuidade do nós. Proibido proibir, façam amor não a guerra, no nukes, sea sun and sex, amor livre, maios e depois abris. Um plasma majestoso inebriando as valetas nauseabundas da sociedade, as paredes sensíveis da cultura revelada e infecta.
Agora, desconhecidos num mundo estranho, penetramos o tempo injetando de melancolia a noite. Libertos pelo álcool e pela dor – pelo reverberar dos tremores da alma -, avançamos pelo silêncio do passado. Dos muros antigos, da cal escalavrada, da argamassa exausta deslizam monstros tenebrosos, figuras emergentes das sombras, dos desfiladeiros inóspitos do amor e do ódio, da raiva, envolvendo os transeuntes e conduzindo os seus passos. Arrastando-os na nebulosidade da luz noturna. Ninguém escapará aos demónios da noite, as consciências rastejantes avançarão na lama do devir, sinuosas e uivantes, as cavernas hiantes abocanharão os incautos e os crentes: as peripécias que o sonho comporta se a agonia refrear os impulsos do coração contrafeito. Viajamos no passado, percorrendo o futuro por cumprir. As memórias são, agora, correntes ascendentes ao encontro do delírio. Disforme, enleia factos e fantasias.Tudo não passará de uma construção de realidades pré-cartesianas. Nada existe para lá do sonho. Voltamos atrás, ou melhor, tentamos voltar atrás, percorrendo caminhos de antanho. Pisados por outros pés desenhando as mesmas pegadas no pó rarefeito. Mas o que procuramos não nos espera onde seria expectável. Há locais que desapareceram na voraz fabricação do tempo. Outros, julgando vencer a compressão do que existiu no condomínio de mentes paralelas, ainda exibem vestígios do passado entranhado no esquecimento. A nossa demanda confunde-se com uma arqueologia dos sonhos, uma procura no infinito da frase. Por cada socalco que atinges, novo abismo se abre. O nevoeiro que vem e tudo cobre, faz-te voltar atrás. Não entendes um degrau quando a escada se estende pela lonjura da memória, sem pontos de referência onde te apoies. Se fosse possível atravessar a densidade das memórias, os destroços espalhados pelo caminho, constataríamos que o mundo conhecido de uma vida contém todo o passado da humanidade, sendo que esse passado seria, sem dúvida nenhuma, o cosmos que tudo comporta e manipula.
Entramos no Arroz Doce.

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publicado às 21:56


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