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Ser editor de um poeta é complicado. Ser editor e amigo de um poeta bêbado, decadente e irresponsável é o inferno. Um inferno fascinante, mas um inferno. O meu amigo Rui Dias Simão é um dos maiores poetas portugueses vivos. No entanto parece constantemente querer desmentir-me: deixar de estar vivo.
Hoje tínhamos combinado ir ao lançamento do livro do Fernando Esteves Pinto, amigo comum, à Biblioteca Municipal de Olhão. Aproveitaríamos para distribuir a alguns amigos o último livro do Rui e das edições CATIVA, Poemas do Banco de Trás. Cheguei a sua casa, kantianamente, à hora combinada. Depois de muito insistir com a campainha, resolvi telefonar-lhe. Atendeu, com uma voz arrastada de bebedeira de três dias, da praia." É pá desculpa lá mas estou aqui na praia com um grupo de trissexuais".
Não me digas que as galinhas gostam de queijo?, perguntei incrédulo, mergulhado na areia da praia postiça.
Sim, respondeste, com cara de poucos amigos. E têm preferência por queijo da serra.
Seriam quatro horas da tarde de um dia qualquer e o vento soprava de penente, sem dó. A areia fazia-me cócegas na parte inferior dos tornozelos. Na praia deserta começava a fazer sentir-se um odor a precipício e prossegui o questionário inquisidor: e a que sabem as galinhas comedoras de queijo?
A galinha, naturalmente, respondeu a minha amiga, do outro lado da maré mortiça.
Tinha lógica. Galinha alimentada a milho não sabia a milho, pois não? Mas queijo??!!
Bom. Esqueçamos as galinhas que outros problemas amoro-filosóficos mais prementes se alevantam. Mas queijo?...
Ah, e aquela dos ouriços que não gostam de cães?, perguntei maldosamente.
E com toda a razão, opinou espontaneamente a minha bela e colaborante arqueóloga de sonhos escalavrados. Se os cães gostam de ouriços – gastronomicamente falando, claro – é de todo natural que estes não os apreciem e …
Interrompi a sua rápida e incisiva (diria mesmo canina) argumentação, com não menos veloz e flamejante raciocínio. Mas eu gosto de ti e, até às cinco da tarde como prometido, tu gostas de mim.
Não confundas gastronomia e sobrevivência, com amor e ódio. Replicou sem pestanejar. Eu sobrevivo sem ti, sem amor e sem ódio, até ao fim das marés. Sem religião não existem escravos. O amor e o ódio cativam as consciências obtusas da servidão.
A abrasão arenosa envolvia-me a pele peluda dos milénios. Nos joanetes assexuados convergiam exaustos os fantasmas da perplexidade funesta. Da atmosfera cálida. Reacção dos poros epidérmicos à invasão sedimentar. Na imaginação imensa da maresia, atropelavam-se cães, galinhas, ouriços e sexos. Sexos brandos e apocalípticos, soçobrando de espanto.
O ódio aproximava-se devagar, como era conveniente. Conveniente e imperioso. Na vastidão absoluta dos sentimentos inertes uma gaivota de papelão guinchou na tarde. Da anti-praia sons da aproximação do Levante invernoso. As areias da vida movediça envolviam-me calorosamente e sem mágoa visível. Dizível, pelo menos. O fim da tarde fazia o seu caminho, inexorável.
A minha tia alimentou os felizes galináceos a queijo e nunca se queixou da cor da canja. Mesmo a crosta, que envolvia o caldo milagroso, lhe era meio indiferente. Aproveitava-a para barrar o pão.
O atrito da caneta do tempo soava sulcando o papel da vida. Arrepiava o silencioso tombar do dia. A solidão, brutal e sanguínea, assomou às cinco da tarde de um dia qualquer. Até ao fim das marés.
Foto gentilmente surripiada a Claudia F.
Em Agosto o Algarve torna-se complicado. Não para que os que nos visitam pois esses são os responsáveis pela complicação de que vos falo. São "os agostinhos" epíteto que um meu amigo olhanense lhes aplica porque convergem todos a esta maravilhosa terra em Agosto. Aliás o que acontece em todos os Agostos em todas as terras turísticas do mundo.
Vais comprar o jornal, já acabou. Vais meter o euromilhões, está uma bicha até à rua do fundo. Vais tomar um café, não tens mesa. Vais ao restaurante, esperas 2 horas pela mesa, duas pelo empregado, duas pelo conduto e duas horas pela conta. E tudo aos repelões, com caras de caso e com os agostinhos a refilar e amuados com a confusão que eles próprios criam.
Hoje para fugir a este estado das coisas fui dar uma voltinha na minha velha Honda. Barrocal e Serra (até para ver como é que isto vai de incêndios), tudo fantástico como sempre. Santa Rita, terra da minha mãe Rita, serena e acolhedora (uma construçãozita aqui e ali esquisitam mas aceita-se). Quando me ia deitar na curva para a Quinta da Cativa um pensamento mau (normalmente bom) invadiu-me a cachimónia: um cigarrinho na Fábrica. Ria e mar com Cacela-a-Velha a espreitar lá do alto. Este, habitualmente bom - pese embora os malefícios do tabaco -, espreitar da ria, constitui um dos melhores divãs para a minha frágil e convulsa mente.
Quando cheguei ao cruzamento, na estrada que leva do Ribeiro do Álamo e Cacela-a-Velha, já os automóveis tomavam conta das duas margens do alcatrão. Quando entrei na estrada da Fábrica, a loucura já era assinalável: carros dos dois lados da estreita via quase impediam a passagem de um carro, os cruzamentos eram manobras dignas dos melhores pilotos de moto trial. Dentro da localidade a loucura era total: nós de tal forma complexos impediam a maior parte dos carros de prosseguir o caminho que os seus ocupantes tinham delineado. À primeira vista pareceu-me que só pelo ar ou pelo mar. Com a minha velha e dedicada mota, lá fui furando como pude entre aquela amálgama de lata e plástico e pus-me dali pra fora rapidamente e doente com a alucinante experiência vivida.
Como é possível que tanta gente se sujeite a tanta dor para ir e vir "descontrair" até à praia. A praia da Fábrica, garanto-vos é uma coisa do outro mundo. Mas o querer não pode constituir nunca a morte do querido e do ...querendo.
Não me digas que as galinhas gostam de queijo?, perguntei incrédulo, mergulhado na areia da praia postiça.
Sim, respondeste, com cara de poucos amigos. E têm preferência por queijo da serra.
Seriam quatro horas da tarde de um dia qualquer e o vento soprava de penente, sem dó. A areia fazia-me cócegas na parte inferior dos tornozelos. Na praia deserta começava a fazer sentir-se um odor a precipício e prossegui o questionário inquisidor: e a que sabem as galinhas comedoras de queijo?
A galinha, naturalmente, respondeu a minha amiga, do outro lado da maré mortiça.
Tinha lógica. Galinha alimentada a milho não sabia a milho, pois não? Mas queijo??!!
Bom. Esqueçamos as galinhas que outros problemas amoro-filosóficos mais prementes se alevantam. Mas queijo?...
Ah, e aquela dos ouriços que não gostam de cães?, perguntei maldosamente.
E com toda a razão, opinou espontaneamente a minha bela e colaborante arqueóloga de sonhos escalavrados. Se os cães gostam de ouriços – gastronomicamente falando, claro – é de todo natural que estes não os apreciem e …
Interrompi a sua rápida e incisiva (diria mesmo canina) argumentação, com não menos veloz e flamejante raciocínio. Mas eu gosto de ti e, até às cinco da tarde como prometido, tu gostas de mim.
Não confundas gastronomia e sobrevivência, com amor e ódio. Replicou sem pestanejar. Eu sobrevivo sem ti, sem amor e sem ódio, até ao fim das marés. Sem religião não existem escravos. O amor e o ódio cativam as consciências obtusas da servidão.
Meu Deus!
A abrasão arenosa envolvia-me a pele peluda dos milénios. Nos joanetes assexuados convergiam exaustos os fantasmas da perplexidade funesta. Da atmosfera cálida. Reacção dos poros epidérmicos à invasão sedimentar. Na imaginação imensa da maresia, atropelavam-se cães, galinhas, ouriços e sexos. Sexos brandos e apocalípticos, soçobrando de espanto.
O ódio aproximava-se devagar, como era conveniente. Conveniente e imperioso. Na vastidão absoluta dos sentimentos inertes uma gaivota de papelão guinchou na tarde. Da anti-praia sons da aproximação do Levante invernoso. As areias da vida movediça envolviam-me calorosamente e sem mágoa visível. Dizível, pelo menos. O fim da tarde fazia o seu caminho, inexorável.
A minha tia alimentou os felizes galináceos a queijo e nunca se queixou da cor da canja. Mesmo a crosta, que envolvia o caldo milagroso, lhe era meio indiferente. Aproveitava-a para barrar o pão.
O atrito da caneta do tempo soava sulcando o papel da vida. Arrepiava no silencioso tombar do dia. A solidão, brutal e sanguínea, assomou às cinco da tarde de um dia qualquer. Até ao fim das marés.
Texto para o Luíz Pacheco. Um escritor como outro qualquer.
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