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Quando cheguei, atraquei de mansinho ao porto – há que oferecer a quem nos espera a ternura da beleza – e saltei da embarcação que me conduzira com uma desenvoltura que me surpreendeu: a velhice lentifica tudo, e tudo aproxima da horizontalidade os dias da proximidade ao indizível silêncio que nos espera. Às gaivotas dolentes, lancei o meu olhar humano de superioridade vulgar e continuei ao encontro do nada embrulhando-me nas ruas estreitas e escuras que deixavam as águas do mar para trás. As ruas que me tragaram de imediato como se engole um engodo pensando do próprio isco se tratar. Uma música ricocheteava nas paredes sujas e gastas da cidade que me conduziam os passos. Os passos e a alma. A alma que se limitava há anos a seguir-me como canídeo obediente e fiel. Domesticada, arrastada pelos caminhos que o destino traçara. Destino de que troçara quando o corpo jovem e cruel rompia a vida caminhando nos limiares resvalantes dos abismos. Corpo e alma correndo por entre as labaredas flamejantes em cavalgadas irregulares e insanas. Corpo cavalgando o desejo da carne, alma navegando as alterosas ondas da inquietude existencial. Uma alma estrangeira, desejando o impossível das desassossegadas tentações, ampliando as liberdades de quem quer o infinito. Quando, cansados da longa correria e da solidão dos caminhos divergentes, pararam e se encararam como nunca fora possível, a alma exaurida conformou-se à sua sorte: o conforto do veículo que a acolheria. A segurança do corpo envelhecido.
Um tango antigo soltava-se da porta de uma taberna escondida. Um corvo acorrentado habitava uma tabuleta com o nome do estabelecimento. Loucuras, disse o corvo. Loucuras, a tabuleta. Entrei, invadindo a penumbra quieta do interior do tasco. Subitamente, a minha alma soltou-se de mim e juntou-se ao corvo no alto da tabuleta. Loucuras, era o nome do corvo. Loucuras, foi o que minha alma lhe pediu.
Monte Gordo, 17/1/2019
Foi preciso esperar pelo ano de 1980 para ultrapassar pela primeira vez a linha do Douro. Naqueles distantes anos as viagens não eram tão fáceis e para um algarvio da aldeia o Porto era bem longe. O convite para a viagem foi da minha querida amiga Henriqueta e a estadia em sua casa, na avenida que risca a cidade de Gaia, ao lado da Câmara Municipal e em frente do , também mítico,Café Símbolo. Quando, descendo a longa avenida da República em Gaia, avistei a "cascata sanjoanina", foi paixão para a vida. Esse dia longínquo foi de emoções fortes e inesquecíveis: feira de Vandoma, Ribeira, travessia a pé da ponte D. Luís (fosga-se),Piolho e Majestic. O primeiro simbalino, a primeira francesinha ( gastronomicamente falando, é claro), o primeiro verde tinto. A minha estadia no Porto e em Gaia foi ainda mais épica porque um grande amigo, que aqui às vezes mete o guedelho, também se associou à viagem. Mas como só verdadeiramente se babava quando passávamos lá para o lado das Auntas, vai ficar de fora da história, que é para aprender.O Porto passou a ser uma das cidades do meu coração. Passei a frequentá-la assiduamente e, vejam lá que, morando quase sempre no meu inseparável Algarve, os meus filhos são naturais de ... Vila Nova de Famalicão, nas barbas da Invicta.
Vem esta converseta toda a propósito dos cem anos do Café Piolho, aliás Café Âncora D`Ouro. Sempre que vou ao Porto, procuro lá ir tomar um simbalino. Também o fazia ao Majestic mas está plastificado e para o inglês ver e os preços upa, upa. O Piolho é lindo, tem uma esplanada fantástica, uma envolvência urbana deslumbrante e a fauna que por lá para e passa é do melhor Fellini que se pode apanhar.
Faço votos para que se mantenha assim por muitos e bons anos e que nunca acabe por morrer às mãos duns negociantes de hamburguers ou de créditos e débitos.
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