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Retirei os olhos e coloquei-os
Sobre o parapeito da tua janela.
Com o corpo cambaleando, cego,
Entrei pelo mar adentro e
Nadei até perder o pé. Do
Parapeito da janela avistava-se
Um ponto boiando no azul
De chumbo, na boca hiante entre
O céu e o mar.
Quando abriste a janela e
Viste os meus olhos voltados
Ao mar, vimos os dois, da
Janela do teu quarto, um
Tubarão avançando ao meu
Encontro. Sem olhos, o meu corpo nada via. E nadava.
E o grito arrepiante que vibrou no
Ar da tarde que se iniciava
Nunca haveria de chegar ao
Nadador cego que planava nas
Profundezas de si mesmo. Fizera sim,
Tombar os meus olhos na
Areia morna da tarde de outono.
Foi então que a cena que a
Tarde geria se transformou bruscamente
Na peripécia estranha que os
Nossos olhos presenciaram:
O tubarão rodopiou três vezes
No ar que cobria a serenidade
Das águas e apontou
O nariz de lixa às areias sonolentas
Da praia, Chegado ao borbulhar da
Espuma das ondas, aspirou intensamente
O ar que cobria a praia e os meus olhos rolaram suavemente
Na direção da garganta profunda do seláquio.
A menina de tranças e peitos
Inchados que atravessava a praia
Numa corrida desenfreada chegou
Tarde e já não viu o animal
Que os olhos tinha engolido.
Eu também não o vejo, mas vislumbro o nada
Porque os meus olhos estão dentro do tubarão.
A escuridão que me rodeia afasta-me de ti e o mar é imenso.
Os peixes trarão o nosso estranho passado.
Monte Gordo – 8/6/2017
Em silicon valley os colaboradores de unicórnios dormem em autocaravanas à porta das startups para não perder tempo entre a casa e o trabalho, tomam pastilhas e tabletes para não gastar o tempo com refeições alienantes, trabalham, até, de fraldas para dispensar a frequência das insípidas casas de banho. Em silicon valley os teclados de computador têm triliões de espécies de vírus, bactérias e ácaros e os dedos dos criadores de sonhos e crenças para incréus rendilham figuras com os neurónios desassossegados, não passam de viajantes sem destino e sem memórias. Em silicon valley o inglês é a língua que fenece nos lábios fechados, ali se ergue, na rede que globaliza, a nova e indestrutível torre de babel, ali convergem os infelizes que inventam o novo mundo e programam o homem novo. Em silicon valley os logaritmos contagiosos rastejam nas redes sociais. O homem novo vomitado sem revolução, o homem digitalus, o homem tornado robô e desligado da natureza perversa em que o tigre devora a ensanguentada gazela. Em silicon valley os homens e as mulheres não fodem a não ser nas férias, que são raras e só quando a depressão é grande e a felicidade espreita. Masturbam-se com as mãos que se perdem nas teclas indigestas das máquinas e nos ecrãs tácteis. Em silicon valley, e no resto do vale, que é o resto do mundo, o amor foi esquecido e anda pelos abismos das noites sem néon à procura da humanidade cruel, continuando a errar e a apavorar o homem novo. Para que tudo seja perfeito e que as consciências atinjam o paraíso é preciso conquistar o sono: o capitalismo só será a vida, a vida inteira, quando a humanidade permanecer em eterna vigília. Em silicon valley os vermes, cookies divinos, governam o mundo a partir de intrusos que passeiam na tua cabeça. Não deixes acabar a noite fria.
Hoje, o dia será tão grande que ainda não nasci.
Foi hoje mesmo que Timoteo introduziu a 12.ª corda da lira
E o menino Mozart, depois de ter tocado cravo de olhos vendados para a corte aparvalhada, pediu Maria Antonieta, futura rainha
de França, em casamento (quando voltou a Paris já homem, ninguém lhe ligou peva).
Possivelmente o dia nem terminará enquanto não desceres até ao teu mundo interior,
À grande sombra da solidão dos outros. Poderá vir a ser o dia em que utilizarei
a inutilidade como meio de transporte até ti. Chegar a ti sem chegar a lado algum.
Fui lendo e interpretando a linguagem das nuvens refletidas no fundo do mar para passar o tempo que restava no dia dos dias. Sou o homem fantasma e viajo de mota
Pela estrada do pensamento pré-cartesiano, onde tudo pode existir sem existir e as personagens mais reais são as que nunca passaram de sombras ténues duma luz irreal.
Só a mota, sem mim, parece atravessar o emaranhado de vias, viadutos e túneis que M. C. Escher gravou a fogo nas minhas mãos. Sou o homem fantasma que vive nas páginas de Ovídio. Argonauta a caminho da Geórgia na procura do manto sedoso que nos há de trazer a riqueza inesgotável. O homem que previu o que aconteceria quando Einstein pusesse
a potência no C da fórmula das fórmulas: bocejou e foi dar um beijo na mulher, que sorriu como a Mona sorriu pela primeira vez a Leonardo.
O dia, como nos esquecemos tão facilmente das coisas desproporcionadas, avançou bruscamente (só por isso o percecionámos) anunciando o meu nascimento ao final da tarde. Quando nasci, já Nietzsche vivia na minha cabeça, depois de ter conhecido o cavalo de Turim e de ter adormecido na véspera do dia que nos transporta até hoje.
O chicote sibilino do cocheiro de VERDI lambeu a calote visível, the other side of the moon, do meu cérebro e fez-me navegante no dia que não tem fim.
Há água, outras vezes fogo, muitas vezes fogo, na frente de um pente saltando à corda no quintal
de um parente de província.
Uma máquina de café ampara uma faca e uma colher…
Tiro um café e a faca reage
ameaçadoramente fazendo-me a barba à escovinha.
Não sentes o odor a pintelho que sopra do 1.º andar?
Tomo o café… a sombra das cigarras
envolve o pescoço das liceais leitosas e púberes. Gostosas!
Moças sem rosto, de mamas sentadas na maldição
da poeira incandescente.
O problema não é com os sacanas, com os que saltam
de costas para os precipícios da fé, é-o com
Os que acreditam que são tão bons quanto
Os que dançam nus na tempestade, os que roçam
O vento e naufragam nas noites de sangue.
O café desaparece, frio, no quintal do meu tio-avô
E as malabáricas proezas do pente transferem-se
Para o cabelo rebelde da maresia que emerge
Das sombras das cantoras da tarde.
De barba aparada e penteado cruel, saio para
A vida que me espera no comboio sem fim.
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