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Alguns ficaram para trás
o caminho tinha buracos e sabiam-no
abismos laterais
e não os temeram.
Uns soçobraram nos primeiros palmos da curta jornada
atarantados pelo súbito levantar dos cabelos.
Os que presenciaram a aspiração das almas,
caíram um pouco com eles, mas continuaram a trilhar
a poeira dos atalhos.
As linhas que conduzem os gritos
levam-me a terras estranhas
onde os moradores enlatam sonhos
que engolem os que não sabem esperar
pelas imposições agrestes da morte.
Em Marrakesh dormimos nas açoteias doridas
do barro tecido a kiff.
Em Amesterdão dormimos com as mulheres
que não sabiam podar laranjeiras.
Em Bordéus dormimos no átrio da estação de comboios
com lágrimas partilhadas por todos.
Quando acordámos, muitos tinham voltado atrás
o medo toldara-lhes o futuro
as suas mães cantavam nos mares originais.
Tapámos os ouvidos com cera
e os pés voltaram a rasgar as sendas desconhecidas
do acaso.
Para onde queres ser levado?
Pareceu-me ouvir
vindo da intolerância espiral
das atitudes ateológicas.
Nunca um amigo uivará na noite
sem que tudo pare
sem que o rastejar dos sentimentos
se esboroe na areia das engrenagens.
Depois do amor chegam aqueles que o amor contem
os que não deixarão de nos acompanhar
os que são a carne que restará da carne
que a terra nunca há-de aceitar.
A carga tornou-se pesada
e os pés afundaram-se nas águas rasgando o caminho,
impossibilitando a progressão de alguém na poeira lavrada.
Mesmo assim teimámos seguindo os mortos esquecidos
os sem rosto ecoando antanho nos labirintos.
És a espuma silenciosa que se alevanta na proa
revolvendo as correntes inadvertidas do tempo
o nevoeiro que oculta a insensata correria
dos deuses.
Os homens não são o que a natureza quis para si,
os frutos contêm os genes da podridão
que alimentam o que renasce da escuridão prenhe de sabedoria
Olhas, então, para trás.
Nada do que vês te é íntimo.
As pegadas cruzam-se em bebedeiras estéreis,
em estratagemas frágeis que ocultam a memória.
Voltar atrás será uma aventura tão rude
como seguir em frente.
És tu que tens que decidir
sou eu quem escolherá o destino.
Resolvemos recomeçar os trilhos invisíveis
que se estendem pela imensidão do deserto!
Quantos ainda nos acompanharão?
Quantos desistiram exaustos?
Quantos voltaram a pisar os mesmos pés que os pés calcaram?
Nada interessa.
O que fazemos hoje iniciará pensamentos
anacrónicos amanhã.
E tudo recomeça a partir do lodo inicial,
nos primórdios da caminhada.
Eis senão que alguns se adiantam
e se despenham na sofreguidão da jornada
no abismo que ampara e enternece.
Refulgem na noite e alcançam
as esculturas da libertação da morte.
Nada disso me interessa, nos interessa.
Fico só
eu e a imensidão dos nossos.
Ninguém é ele próprio
todos caminham à boleia de todos.
Só quando nos excluirmos da globalização da consciência
sairemos para sempre de deus.
O esquecimento varrerá as partículas que restam
e nada será tudo (como sempre foi)
A marcha que nos conforta a respiração deixará, então,
a podridão alimentar o retorno dos corpos.
(Este será o poema que encerrará o livro "Partículas" que com ele finda até ao fim dos dias)
Apareces sempre que o embaraço escalda
nas ruas onde a impossibilidade espreita
quando a inútil confluência dos afectos
encontra o vácuo ardente das peles áridas.
Apareces como espectro sem leitura
oração sem consequência
escarificando feridas húmidas
revolvendo memórias nas prateleiras longínquas
que obscurecem a sexualidade moribunda
sedimentada na poeira da amargura.
Apareces acenando ao longe
atravessando o abismo intransponível
da loucura instalada e fácil
carregando sinais que permanecem nas eternas tempestades
convocando gritos que rasgam cenários escuros
da inacabada árvore dos sonhos.
Na tua voluptuosa estratégia dançante
arrasas as defesas do destino
as portas que protegem da festa que alicia
os fluxos inertes da solidão.
O alvo não é um refúgio sem consequências
um cadinho estanque e frio.
Todos os lugares transportam distopias carnais e suicidas
tentações brutais que afrouxam a coesão sofrida dos sentimentos.
Apareces e nunca ousas mostra-te.
Monte Gordo (aula de substituição - 9 B)
5/01/2009
A passagem conforta os que não têm nada
os que procuram
os que nunca encontram.
A passagem é um caminho que reflecte as sombras do passado
enquanto dormem os inúteis sobressaltos.
Há gente que precisava de mais vidas para amar
os sinuosos tremores da paixão
as escolhas impossíveis e imateriais
os labirintos claros da impotência que sopra da juventude
difusa, larvar e narcótica.
A passagem une o que respira ilusão.
Os sonhos são a realidade por cumprir
quando da solidão nasce a palavra que embriaga
que sorve o conforto incontornável das distâncias.
Há gente que precisa de mais vidas para sofrer.
Luís Feito Lopez
Na carne enxuta
um cravo rasga a sedimentação brutal dos sentimentos
revolve as águas na aluvião do desejo amovível
Das prepotentes palavras
esquecidas
dos odores intensos da lama
desordenada
da gangrena, dos solavancos da carne,
pingam líquidos que constroem
estalagmites de medo
petrificam os perplexos louvores da memória
o tumor que envolve
amnioticamente a maresia
tornou-se o corpo são onde chapinham as ilusões
incompletas,
sóbrias e descalças
Um corpo entumescido
de vibrações inertes que borbulham
ao encontro da eternidade
Olhaste sempre para o lado
não ousando ver a luminosidade
que se desprende do caminho,
inventando a gestão do futuro,
corrompendo a perplexa realidade.
A memória difusa naufraga
nas traseiras da tua casa,
na árvore enraizada do quintal.
Vês as galinhas-da-cor-do-gato
alimentando-se de vermes da estrumeira?
Utiliza-as para viajares no tempo
feliz das paisagens encantadas,
no princípio fracturante e inatingível,
mergulhando as mãos na merda-fresca-da-cor-do-gato.
Para compreenderes a utilidade da podridão
reboca o teu olhar até à inscrição escravizante
dos tempos primordiais
que espreitam por debaixo do entulho
onde o medo cresceu.
Não mudes,
o passado tem o tamanho do futuro
e a vida é um efémero lampejo de nudez
na anárquica deriva da esfera celeste,
na ausência dolorosa de lucidez.
A tua visão lateral é um sopro
nas velas da caotização do cosmos.
PS: Qual é a cor do gato?
VRSA, 10/9/08
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