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Tenho mil anos, nasci em 1018.
Debutava o segundo milénio e ninguém tinha morrido. Ainda.
Era março do ano 19 do século XI. Tudo o que viria a seguir seria a repetição
Do que tinha sido aquele ano. Sou velho e quero a imensidão do infinito a gerar
Rios de esperança onde há dor e todos querem os sacrifícios para serem jovens e
Terminarem cedo os dias da incompleta solidão. Não somos o que éramos quando
O tempo vinha de mansinho trazer finitude aos sonhos, finitude aos amigos que deixáramos
na estrada. Nunca há tempo para estar com os outros nas sombras das árvores com pássaros.
Os pássaros voam quando não estamos sós, atravessam o coração de quem é feio e não
Nasceu para ser profeta. Todos os pássaros têm visões do inferno quando sonham alto.
Todos os amigos te relembram constantemente que as primeiras chuvas de verão são
Vermes sugando o teu sangue nas correntezas do devir. Tenho mais de mil anos
e não sofro de artrites nas mãos. Tenho mais de dez séculos e não corro atrás da passarada dos vizinhos. Na terra em que nasci, os primeiros figos eram para os pardais. Quando a criançada lá chegava não encontrava senão grainhas das vidas passadas, das vidas mais antigas que a minha, das vidas com mais de mil anos. Mais do que eu mas mais novos que eu. Tão novos que, sendo eu novo, até parecia velho. Velho de um milhão de anos. De tempos antes de cristo, antes mesmo de buda e de todos os homens que quiseram ser como eu: apenas pessoas com mil anos. Matusalém podia ter sido meu amigo se os outro não olhassem para ele como se de um velho se tratasse. E, no entanto, era ligeiramente mais novo que eu.
Quantos suspiros tem um homem que atirar na tempestade para que as suas raízes se corrompam antes de morrer? Antes mesmo de deixar os abutres enlutados caírem da escarpa do esquecimento. Tão profunda como o universo que cavalga os titãs da raiva e do desespero.
Não, amanhã não será o dia da despedida. Será, apenas, tarde. E, por isso, levantar-me-ei, como sempre, cedo.
Cativa, 7 de março de 2018, 21:46
Era um dia comum como se chovesse todos os dias,
Um dia que começara a feder a peixe frito, espada para ser sincero.
Na manhã, deste dia comum, o vento levantara-se espesso e os
Olhos lacrimejantes ousaram contrariar a melancolia dominante.
Quantos dias comuns restarão até ao fim dos meus dias? Ora!,
Se descontar da minha vida os dias extraordinários, poderei
Contabilizar os dias comuns, respondi, irresponsavelmente, à questão formulada.
Nada de mais errado, reconsiderei atirando o olhar até ao fim
Da sandes de fiambre sobre a mesa. A nossa vida nunca
Poderá ser a soma dos dias acorrentados aos nossos joanetes.
Por exemplo: o que ocorre quando o sonho irrompe a realidade?
Eh, pá!, pareces Sócrates! Tantas questões para quê?, pergunto
Eu sem desapertar os botões da braguilha resistente. A vida, é
A vida e um animal precisa apenas de sexo e morte, de um embriagar
A dor que nos rodeia o tempo, os dias que se arrastam na inclemência
Dos precipícios romanceados, ardendo na complexa sofreguidão
Das madrugadas sem fim. Há pessoas que reclamam ser peixes
Prateados brilhando na noite por semear, libertando
Bolhas de escárnio, sem consciência e soluçando pérolas
Fabricadas em folhas de repolho. Os vermes que se alimentam
Do sofrimento das vozes esburacadas alinham com outros
Comedores de deuses, cambaleando na estrada que acompanha
As margens do rio impossível. São sósias emergentes que corroem
Os sorrisos das crianças e as cáries dos velhos.
Como vês, os vermes vivem no seio dos dias excecionais
E controlam a circulação dos pássaros, enquanto
Vigiam a multidão alcoolizada pela emergência dos dias comuns.
A vida não é um corredor sem fundo conflituando com
Os vermes excecionais.
Vrsa, 13/12/11
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