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La mort de mamam

por vítor, em 15.03.23

je suis très triste , je pense a vous souvent , plus encore aujourd'hui car une part de mon coeur est brisé.

Luís de Brito

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publicado às 15:51

Rio da Morte

por vítor, em 15.03.23

 



O pus que escorre desta ferida aberta inicia o rio. Onde começa a dor de me tornar velho. Sim, na ferida aberta, a nascente deste rio sem esperança, a viagem cansada por terras estranhas, traga a planície lenta em meandros de sangue azul cobalto desenhando veias e artérias rompendo a pele. O mar imenso da morte espera a corrente que o procura. Tudo desliza para o mar sem fim. Tudo se despenha na renúncia de continuar. É desespero e sapiência a torrente de lama que arrasta os últimos a sorrir. A cobarde morte esconde o trabalho intenso dos vermes devorando a carne devoluta. A podridão da vida.

Oceano emético de pus iridiscente, lavoura sanguinolenta castrando os antigos temores a deus. Nebulosa opaca ardendo no fim dos dias, atraindo os ossos dos defuntos ao abismo das árvores petrificadas, onde o vento range nas folhas tatuadas pelo verbo insano, verborreia inútil no clamor do silêncio. A morte sempre vence as desvalidas carcaças nauseabundas, envergando os paramentos dos profetas fraudulentos como são todos os videntes encartados.

Quando o rio se perde na lagoa que engole a vida, os patrões da noite sem memória atingem orgasmos monumentais roçando o renascimento das almas eméritas. São portas sólidas as que te oferecem para arrombar.

16/17.2.2023

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publicado às 15:41

Um ser estranho

por vítor, em 04.11.22

Nada há de mais medonho do que a imortalidade. O ser para sempre. Sem obstáculos nunca haveria sombras. Eras, enquanto te conheci, um ser estranho: procuravas na obscuridade desejos insondáveis.

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publicado às 13:28


Ali era a casa da tua bisavó. Aquela de riscas azuis e caiada de branco.



Esta tua bisavó, que ali vivia, tinha três filhas: lindas e cobiçadas.

Eram três as irmãs: a Belinda, a mais velha; a Amélia,

A tua bisavó; e a Josefina. A Josefina tinha

Menos dezoitos anos do que a Amélia, que tinha

menos um que a Belinda. A tua bisavó Amélia era a mãe da tua avó Amélia que era

Mãe do teu pai. A tua avó Amélia foi a pessoa

Que o teu pai mais amou: um amor que tudo superava (e eu amuado).

Foi nesta casa que eu conheci o teu pai para o passar a amar

Até ao final dos tempos. A tua bisavó Amélia era minha prima.

Prima segunda. Primeira, era do meu pai. O teu avô João de Deus.

Que no teu assento de nascimento, na conservatória, está como João de Jesus.

(tenho que lá ir mudar o erro – diz-me a minha mãe desde

que a conheço e eu sei, sempre soube, nunca irá)

Quer isto dizer, e tu sabe-lo bem, que o teu pai era meu primo:

Meu primo segundo colateral. A tua bisavó Amélia que

Era minha prima segunda, via o meu pai, que era seu primo, como mais um irmão.

Ou seja, os meus bisavós paternos eram os mesmos que os bisavós

Maternos do teu pai. A esta casa vim, com a minha prima Célia, visitar a nossa prima

A mando do meu pai que era muito dado ao culto da família.

Viemos de bicicleta desde Santa Rita até às Cabanas. E o teu pai estava de visita à avó.

Afogueada com a longa viagem a pedalar, e com a visão de tal criatura,

perdi, definitivamente, o fôlego. Para sempre!

Depois, ele escreveu-me uma carta e…foi o que se sabe. Tenho a carta guardada

Para ta deixar. Não sei se a tinta do tempo ta deixará entender.

A tua bisavó Amélia, que já era velha por essa altura, era muito engraçada e bondosa.

Estava sempre a queixar-se da perna. Não sei se era só de uma delas,

das duas ou de uma e de outra, alternadamente. E nós, os jovens ríamo-nos a bom rir.

Ela… ria-se também: “Ai a minha perna, ai a minha perna que não me deixa fazer nada!”

As três irmãs eram muito diferentes: a Belinda muito séria e complicada, a Amélia alegre

E bondosa, a Josefina, que tinha menos dezoito aos do que as outras,

mentirosa e infantil. Vá lá que casou com o Ti Evaristo

Que era um bom homem. Foi a irmã Amélia que a amparou nos muitos momentos de aflição.

Dava-lhe dinheiro para ir à praça comprar carne para as duas ao talho do Sr. Feijão,

um bom amigo dos teus avós, e ela ficava a dever e com o dinheiro. Um dia, o Sr. Feijão,

envergonhado, lá contou à tua avó o que se passava. Acho que foi nesse dia que houve a

grande cheia em Tavira. A de 1968. Nesse dia, talvez por causa da arrelia com a carne, a tua

avó caiu na casa do teu tio Joaquim e tiveram que ir os bombeiros de barco buscá-la. O teu tio

morava mesmo nas margens do Rio Séqua. Ninguém sabia onde começava e acabava o rio.

Passavam garrafas de gás. Porcos, galinhas, laranjas e, há quem diga, e jure a pés

Juntos, que vira passar, a esbracejar, homens e mulheres. Até, asseguram, algumas vacas

tristes com a sua sorte. As coisas até correram bem e, chegados a margem segura, lá foi a tua

avó até ao hospital. Era só um braço partido e, depois de bem engessada pelo Dr. Jorge

Correia, ainda apanhou camioneta da carreira para Vila Real e visitou, antes de eu a levar no

Velho Anglia IA-32-12 à fazenda da Cativa, o filho Fernando, como o fazia todas as quintas.

Esses eram dias felizes para o teu irmão e para ti: nunca faltavam

as tabletes Regina compradas na venda do Velho João. O teu pai era o seu menino querido.

Foi-o sempre até ao esquecimento. E, embora o teu nome tivesse sido o último que a sua boca

Pronunciou, foi o seu Fernando o amor da sua vida. O menino teve uma trágica paralisia

Infantil e, a partir dali, viveram um em função do outro. Um para o outro! (só por isso eu

Compreendia essa preferência pela mãe. Compreendia, mas não aceitava. Mesmo depois de

Me ter arrepiado e ter sofrido com o seu choro descontrolado na sua morte…)

A última vez que a tua avó Adelina me bateu, e foram bofetadas cruéis, foi por causa de uma

Tia minha. Dizia ela que o meu namorado não era o melhor para mim. Que nunca me

daria segurança e sustento com o problema da perna. Nem que o tenha que transportar às

costas o resto da minha vida, respondi-lhe eu de forma agreste. A tua avó esbofeteou-me por

causa desta raiva libertada. Foi a última vez. E a primeira. Mas deixou-me casar com o teu pai.

O meu pai morreu dentro da nora que regava a horta. Quando foi pôr o motor

A trabalhar no fundo da garganta vertical. Na plataforma de cimento sobre as águas.

Tinha-o feito centenas de vezes. Neste dia, os fumos subiram mais depressa do que ele pela

escada de corda de aço. Pelo túnel de luz e escuridão.

Caiu inanimado sobre a plataforma de cimento. Se tivesse caído na água talvez tivesse

acordado e sobrevivido. Quando telefonei para a escola para te comunicar e mandar vir para

casa, foi o senhor Coito, o chefe dos contínuos, que me atendeu o telefone. Estavas a dar saltos mortais, vê bem a

ironia, na caixa de areia, por debaixo do depósito da água. No velório choraste

convulsivamente quando te mandei beijar o teu avô para o deixar ir. As velhas consoladas com

o menino sofredor. Disseste-me, mais tarde, que só tinhas chorado porque te obriguei a beijar

um cadáver. E que ainda hoje sentes o frio da sua careca nos lábios.

Nunca conheci o meu pai com cabelo. Como sabes, tive três irmãos que morreram

precocemente. A minha família foi destroçada pela morte:

um maninho tinha apenas uma semana e eu fui avisar o meu pai, o seu pai, o teu avô, o primo

do teu pai, a quem mudaram o apelido no papel, atravessando

Barrocais e arrifes até onde o mestre Deus construía uma casa. Voltámos a casa tão tristes

Como se fôssemos fantasmas no paraíso da loucura… por barrocais e arrifes. Depois, o meu

Irmão mais velho deixou-nos quando veio da tropa e a minha irmã foi-se para lá do tudo e do

Nada e deixou-nos a pequenita, que se fez grande e mulher, a tua prima Antonieta. Foi a tua

avó Adelina e eu que a criámos. A menina tinha uma sombrinha, que a acompanhava para

todo o lado e que só ela via. Existia só para ela. As pessoas abanavam a cabeça com tristeza (eu, que

cheguei muito mais tarde, adorava a sombrinha e até a usava, às escondidas, quando chovia)

Nunca pensei que chegaria a esta idade. Sempre imaginei que também soçobraria à vida cedo,

sem te vir a conhecer. Talvez por isso, terei lutado tanto pela família. Quando casei, não tinha

um tostão. Tirando alguns presentes práticos, a minha tia, a tia que nunca gostou de mim,

e por isso não a nomeio, deu-me um garnisé e uma jarra – e o garnisé, nessa mesma noite, a

noite de núpcias, desvairado com a mudança, voou contra o pechisbeque e atirou-o ao chão.

Em cacos. Fui pedir dois escudos à minha mãe. Que não tinha. Em cacos! Prometi nunca mais pedir dinheiro a ninguém. E cumpri. Até hoje.

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publicado às 17:08

Façam-se trevas por agora

por vítor, em 03.02.21

IMG_20201027_174515.jpg

Talvez a morte nos traga a paz.

Talvez o que parece calma e pousio

Seja apenas uma tempestade passageira

Não sentida pelos outros.

- Eu sou um cadáver abandonado e triste,

Poderia ser o que depois da vida

Traz severidade no trato e frigidez

ao desprezível que pode emergir da sabedoria.

- Não me abandonem, que sou triste e renuncio à catástrofe

Dos dias de antanho, sinto ainda a alma

Presa aos ganchos aguçados da carne,

Do corpo devoluto, o palpitar insuportável

Que se anuncia sem clamor. Levem-me a ver o mar,

A esquecer o olhar sem brilho, sem vida

Da horizontalidade sem fim. Não me abandonem

À cova do devir. Eu serei a vida que se transforma

E ilumina as trevas.

 

Monte Gordo, 18/1/2021 (segundo ano da peste)

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publicado às 13:05

Depois da batalha

por vítor, em 23.04.18

 

No campo devastado os cadáveres apodrecem ao Sol. Foi decidido pelo rei 
Que só os necrófagos poderiam tocar nos corpos em sangue. Tens o teu irmão entre os mortos
Que incham ao sol clemente de agosto. Os gemidos varrem a planície da batalha e ninguém
Ousa aproximar-se. Ninguém, sequer, ousa aproximar o olhar.
Tudo apodrece naquela tarde resplandecente de sangue e morte, de heróis mortos, heróis moribundos e mortos. Ninguém festeja nada que a dor se ergue como montanha de medo. Como sabre esquartejando a noite que se aproxima. A noite que tudo esconde e tudo revela: já é noite quando te levantas do catre fedendo a dor; fora da tenda uma Lua febril chicoteia, ao longe, o campo de batalha; caminhas como se fosses um vento sem destino que não a morte; procuras por entre os cadáveres de cavalos e homens – um equino uivante escoiceia o ar carregado de pó e sangue, escoiceia e bufa -; um homem com uma fratura exposta no coração – cedendo perante o abismo de fogo e fuligem escaldante, fundido à espada que o não protegeu – agarra-te a perna tremente. Continuas evitando o ferro e os corpos jazentes, cegaste e nada vês. Só o amor te conduz e pensas-te como criança, os teus pais, os nossos pais e nós. Crianças como todas as outras. Só os adultos têm sonhos para as crianças. As crianças só querem viver. E viver é brincar. Sempre. Com tudo e com nada. E é por isso que não tens como deixar de desobedecer ao teu rei.
Quando te aproximas do teu sangue frio, parado nas artérias e veias que também são tuas, um suor gelado escorre-te do corpo. Os olhos fitam os olhos. Os teus brilhando à Lua fitando o fim. Os meus afogados em lágrimas por tudo o que fomos e ainda seremos. Afogamos em dor. A dor de antanho e a de agora. A dor que transportarei para sempre como para sempre te arrastarei para longe onde não te sintas abandonado.
Era já tarde na noite de todas as decisões, e o rei dormia agitado. Volteava e gritava na noite única e infinita. 
A sombra de um homem carregando o cadáver ainda morno de um irmão escorrendo sangue atravessou o campo de batalha, pisando as almas que se libertavam das armaduras moribundas e tropeçando nos gritos dos cadáveres abandonados. Carregou-o até ser dia e, depois de o ter deixado em paz, voltou para o seu rei.
O dia seguinte seria de festa e júbilo.

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publicado às 12:00

O Zé Alqueva é o melhor pedreiro que conheço. As obras cá da quinta são todas feitas por ele. Há uns anos, desenhei uma casa e apresentei-lha para a construirmos. É a belíssima casa de turismo rural que temos aqui na Cativa. Com uns reparos do mestre, lá foi, aos poucos, nascendo uma casa de habitação onde antes era o armazém agrícola do meu avô. Construímos é uma forma de dizer: construiu-a o Zé, que eu tenho o meu tempo ocupado a trabalhar para as coisas da mercearia. O mestre Alqueva é um perfecionista. Usa os materiais tradicionais como ninguém e gosta do que faz. Às vezes irritava-se com as minhas sugestões patéticas ou com os materiais que eu arranjava para tornar a casa (achava eu) mais bonita. Curiosamente, e para meu espanto, não levantou objeções a chaminé da lareira que desenhei e que se ergue ao céu. Já com os azulejos da cozinha o homem atirou-se ao ar: cada um é uma peça única no tamanho, na espessura e na textura, o que acarretava um trabalho brutal e moroso de colocação. Um dia, cheguei a casa e encontrei-o a chorar convulsivamente sem conseguir pronunciar uma palavra. Pensei que lhe tivesse morrido um filho, a mulher, o pai ou a mãe, mesmo sem saber se os tinha. Quando, passado um bom bocado, conseguiu balbuciar coisa que se entendesse, disse-me, aos repelões, que tinha morto a Perdida. Atropelou-a quando fazia marcha atrás com o seu pequeno camião. A Perdida era uma cadela. Como o próprio nome revela, apareceu, sem se saber de onde, na Quinta e de cá mais não saiu. Afeiçoámo-nos a ela e, mesmo já tendo um cão (temos sempre um cão, às vezes dois, mas sempre machos pelo que a Perdida seria uma exceção na linhagem dos guardadores cá do sítio), ficámos com ela. O mestre Alqueva era o que mais tempo passava com ela. Os moradores da casa e donos da aparecida saíam pela madrugada e só regressavam pelo final da tarde. A hora do almoço era o grande momento de convívio. Comiam juntos e partilhavam mesmo as refeições. No final davam um passeio entre as laranjeiras. Homem prático, em lágrimas, pegou no cadáver a esvair-se em sangue, colocou-a na caixa do camião e enfiou-a num contentor do lixo. Depois da morte tudo é lixo, disse-me, filosoficamente, ante o meu desagrado com o desfecho. Eu, um sentimental e protetor da saúde pública, costumo dar-lhes (aos meus gatos, cães e galinhas) um funeral mais condigno. Abro uma cova à enxadada, deposito o amigo docemente no fundo e cubro-o com a terna terra da Quinta. Vem este longo confuso texto a propósito de uma certa resposta a uma certa e determinada, e inconveniente, questão que um dia fiz ao meu-mestre-de-obras. Zé!, porque é que não arranjas uma boa equipa e, com a tua arte e sabedoria, não te pões a ganhar dinheiro a sério construindo casas e não te deixas de biscates para a vizinhança? Respondeu-me assertivo e sintético. Eu sou um homem estranho! Nunca mais falámos no assunto e regressámos aos interessantes temas de antanho: mulheres boas e futebol. A supra citada e certeira resposta a uma, também referida, questão inconveniente, deveria ser a deixa às constantes, e seguramente inconvenientes, questões dos meus amigos leitores; e refiro leitores, porque a maior parte dos meus amigos nem lê nem sabe que eu escrevo; que já navegaram nas minhas palavras. Então, quando é que publicas essas escrituras ocultas? Quando é que te podemos arrumar na estante? Se não o faço é porque achariam a resposta um contra senso. Não é o escritor um gajo estranho?

PS: O Zé Alqueva tem uma escrita impressionante, única e idiossincrática, como se quer para quaisquer escritores. Nos papéis que me entregava à sexta-feira para justificar o pagamento, chegava a dar três erros ortográfico na mesma palavra. Por exemplo: “sementu” em vez de cimento ou “cervisu” em vez de serviço. E o que é que isso interessa? Não reparou o escriba das presentes palavras que num poema já blogado e facebucado vinham três, digo três, arreliadoras burradas. Já agora, para o envergonhar, aqui vão elas: embriaguês, perconceito e, vá lá, equilibrio ( fosga-se, o que tive de lutar contra o corretor para as escrever assim). Viva o erro ortográfico, ele representa para a escrita o que o nu representa para a pintura (só para chatear, estive quase a pôr assento, digo acento, agudo no nu).

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publicado às 21:45

António que tens a minha idade

por vítor, em 14.08.10

 

Ontem, enquanto lia o jornal na esplanada do Casal, em Vila Nova de Famalicão, os olhos brilharam-me, subitamente, na sombra centenária dos plátanos. Uma fotografia de um querido amigo encimava a página 13 do jornal (a página 13 de uma sexta feira 13 - coincidências, meras coincidências), o sorriso foi-se abrindo, até quase à gargalhada suave: "O escritor, dramaturgo e antropólogo António Pocinho, autor de Elucidário Sexual, Pés frios dentro da Cabeça -  (a gargalhada enrola nos lábios perplexos) - ou A Ilustre Máquina de Ramires, - ( a gargalhada rebenta na face como pára-quedista que estoura no chão com o pára- quedas por abrir, e acodem-me gritos que  sacodem a memória e me arrastam num sofrimento indizível até aos confins da dor) - morreu quarta-feira, em Tomar, aos 52 anos..."

 

Na terra dos antepassados, que nos pré-existem e que nos sucederão, onde o principio e o fim, o nascimento e a morte, fecham o ciclo da cultura, apresentaremos o brutal teatro que nos envolveu a vida.

 

http://www.otemplario.pt/ultimahora/noticia/?id=4244

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publicado às 15:13

descansado*

por vítor, em 01.08.10

 

Fui hoje, sob - que mais parecia sobre -, um sol escaldante, "acompanhar" o meu amigo Mané até ao cemitério da Conceição. Há alguns anos que pouco falávamos. No final da adolescência, eu saltei do seu barco, ou melhor, foi ele que saltou do nosso barco, que abandonou a navegação à vista, e enveredou por uma rota que nos trouxe até aqui. Eu vivo e perturbado. Ele defunto e sereno.  O contrário das suas vidas. Ele caminhando à beira do precipício. Gozando o medo dos outros e sua própria vertigem: o suicídio lento e doloroso da embriaguez permanente. Da festa sem fim. Vivia sozinho desde cedo. A morte prematura do pai e a migração da mãe (com a irmã) para a Suíça dava-nos, egoístas, um fantástico covil para as piratarias da juventude. Depois de noites memoráveis pela praia e os bares de Cabanas, recolhíamos a sua casa até a madrugada desembocar no dia. Noites de muita loucura. Noites incontáveis. Eu,e outros, sabendo que a festa não é eterna fomos entrando, aos poucos, na vida séria. O Mané continuou o seu percurso até ao fim.

Fininho, de rabo de cavalo longo, sempre de negro era das figuras mais carismáticas de Cabanas. Sobretudo da noite. Com uma alegria transbordante e um humor inteligente, seco e corrosivo, ninguém lhe ficava indiferente. Não havia visitante da povoação que não o viesse a conhecer. A sua vida intensa e no fio da navalha não o impediram de trabalhar sempre. Como barman (sic), empregado de cozinha, empregado de mesa e outros ofícios ligados ao turismo. Namorador e apreciador da beleza feminina, o amor de uma austríaca (conhecida na noite local), leva-o à Áustria onde vive algum tempo trabalhando em restaurantes. Volta revoltado com vitória da extrema direita. A degradação das bordas do precipício levam-no, cada vez mais, a aproximar-se do fundo. Uma amiga minha tinha-o visto há poucos dias numa cadeira de rodas empurrada pela austríaca. Pensei ir vê-lo à "nossa casa". Tinha medo de o encontra no limbo. Ontem na feira da Conceição, e na noite de baile e cerveja que lhe está associada, soube da notícia. O Mané tinha partido para a terra de onde veio toda a gente e para onde toda a gente vai.

No cemitério, que une os mortos de Cabanas e Conceição, está parte da minha vida. Uns sairam no final da cerimónia. Outros ficaram. O Mané, com uma cerveja numa mão, coloca-me a outra no ombro, contorce-se ligeiramente e solta uma gargalhada que ecoará para sempre nas terras da ria.

 

*Nestas terras do Sotavento, quando alguém refere um falecido, coloca o adjetivo "descansado" antes do nome do referido não vá o dito vir incomodar o referente.

 

PS: Por ironia do destino, quando me meti no carro para ir "acompanhar" o Mané, liguei o rádio e começou a tocar a música que acima inseri. Os Doors acompanharam-nos e acompanham-nos para sempre.

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publicado às 18:03

intermitências da vida

por vítor, em 18.06.10

 

O panorama da literatura portuguesa é um deserto bem árido. Nesse deserto emergem, raras vezes, oásis flamejantes que se projetam na história da literatura universal. Esses oásis disfarçam a mediocridade dominante. Com os dedos de uma só mão contaríamos os génios da literatura universal que também o são da  literatura  portuguesa. Temos Luís de Camões, temos o maior poeta que se passeou na crosta da Terra, Fernando Pessoa,  e temos José Saramago. O resto é paisagem. Por vezes indistinta. Rasa e nula.

Hoje, desapareceu fisicamente o maior prosador da língua portuguesa e um dos maiores da literatura universal. Chamava-se  José. A plateia pateou-o muitas vezes. A genialidade é desassossegante e o desassossego é a morte do burguês. A literatura portugesa é burguesa. Contentinha e vaidosa. Auto-satisfaz-se e não arrisca. É um mundo de palmadinhas nas costas e de apresentações de uns para outros e de outros para os mesmos. Hoje é um dia verdadeiro. Todos vão tentar ser seus amigos. Todos irão esbarrar com a morte que traz a eternidade.

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publicado às 22:53


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  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D