Uma das mais importantes conquistas do escritor, e relevo sempre, na minha modesta opinião, que o escritor é igual a qualquer outra pessoa, e que qualquer outra pessoa pode ser, já o é em bruto, um artista, é a sua voz. Não é suficiente, mas é, seguramente, condição necessária. Só quando o escritor é possuído pela sua voz, se torna um criador singular. E um artista!
Como podemos facilmente constatar, hoje, e em todos os tempos, os que campeiam na praça usam, e alguns abusam, das vozes de outros. Brilham, muitas vezes sem dar por isso, e orgulhosos disso, dessa voz, nos salões, exposições e concursos, por esses campos afora. Muitas vezes, quase sempre eles, ganham prémios e mordomias. Muitas vezes com vozes extraordinárias. Só que são vozes extraordinárias de outros. Um "plágio" subliminar, difícil de provar e, por isso, legal. A realidade é diferente para cada pessoa. Só a ficção poderia, nunca o é, ser semelhante para todos. O que a paixão vê não existe. Apenas alguns cadáveres se passeiam com resquícios de literatura agarrados ao corpo, e, algumas vezes, às almas. Espectros!
A cena literária nacional é tão pequena, tão circunscrita, que, quando te pões a falar mal de alguém, se te descuidas, já estás a falar mal de ti próprio. E, para teu alívio, e espanto, isso sabe-te tão bem! A literatura deixou de servir para inquietar ou contaminar. Sabemos, no entanto, que os agentes literários, leitores, escritores, editores, livreiros, críticos, entidades oficiais e oficiosas, premiadoras do mérito e do demérito, formatados pelas correntes redutoras dos meios artísticos, ao menor desvio da regra não inscrita, do caminho já pisado, fremem de indignação e malham nos que se atravessam nesta estrada da inquietude oficializada e canónica. Nada há de mais perturbador do que um sujeito em contramão na autoestrada. Nadando contra a corrente do rio grosso e manso. Ciando em barco alheio.
Talvez por isso, seja tão universal a simbologia da cabeça decepada. O Areopagita, São João Baptista, os Santos Mártires de Marrocos, Luís XVI. Quem não acompanha a arte como mezinha desinquietante, tem o pescoço exposto à fria e pesada lâmina da guilhotina.
O novo escritor será um mártir literário. Não lhe bastará a pobreza e a inutilidade das escritas, ainda precisa de ser maltratado por leitores, pares e críticos. Quanto mais desconsiderarem e rebaixarem a sua escrita, mais feliz se sentirá. Como a um mártir, o castigo só reforça o martírio: curiosamente, e a cultura judaico-cristã-islâmica é terrível e exemplar nestes domínios do martírio, castigador e castigado, escritor e leitor, retiram prazer do castigo. Quando alguém elogia o escritor, por caridade, dever ou admiração, vê-lo-emos a planar, sem chão, vazio e aparvalhado. Quase sempre, enveredará por outros caminhos que se afastem da bajulação do leitor: o leitor é, continuará a ser, por incrível que pareça, a medida de toda a escrita. Criador e criação, sendo um outro e outro um, numa dança sem fim rodopiando convulsivamente ao som de uma música gravada a fogo na memória coletiva da humanidade. A lassidão das peias deterministas, que libera loucos e dementes das pesadas correntes do determinismo social, faz destes os potenciais inovadores mais fecundos de entre os criadores. As obras de ponta serão o resultado, cruel e vazio, de mergulhos, em apneia, de pescadores descomprometidos no profundo e vasto inconsciente. Pescadores sem rede, de pérolas inúteis. Inúteis, mas preciosas.
Tudo o que fazes se liberta do que somos. A autoria é sempre uma obra coletiva sem autor. Inimputável. Sempre a obra, por vezes o suposto autor. O que a IA nos vai trazendo, aos trambolhões, não é senão o acentuar e adensar deste pastoso manto que vai transportando e moldando a nova literatura. A IA varre o mundo cibernético, ainda pouco complexo, falacioso e de panóplia bamba, à caça da narrativa; a autoria humana, a mãe de todas as inteligências, varre a genética e a cultura arquetípica, um universo de complexidade e autenticidade sem fim, sempre em reformulação e revolução, esculpindo novas realidades de uma simplicidade excruciante, dolorosa e, inevitavelmente, dolosa.
Resta-nos a voz. A voz que a tecnologia nunca encontrará.