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Dizias: éramos eternos. Conduziam-nos os ventos. Ouve as letras do Dylan que fundem

almas mortas. Quantas vezes pediste aos ventos a carícia das tempestades? Quantas vezes sentiste a espuma da maresia a trepar pelo corpo até te aspergir o rosto incendiado pelo Pôr-do-Sol?

A mulher caminha à beira do precipício. Lá em baixo, o mar entrega-se à inútil, e eterna, luta contra os penedos escuros que desenham a costa irregular. As espumas trepam os rochedos procurando as fendas irrepetíveis. Brancas, azuladas; liquefeitas, evanescentes e vaporosas. Elevando-se até atingir as bordas sinuosas das falésias. A mulher ardendo!

Para quem caminha nas tortuosas linhas do abismo, o espetáculo é deslumbrante. Magnético. O Sol esmorece tombando devagar na massa azul-cobalto que se estende até ao fim do mundo. Desenha uma estrada de luz a caminho do fim. Do fim dos dias, princípio das noites. Das noites eternas. Doces e inalcançáveis por quem pretende descansar da vida atormentada de outrora. O passado funciona como o lastro que nos liga à vida e impede a fuga dos dias vindouros.

Dali, as aves planam de costas viradas à vida. Flutuam de asas abertas, suspensas na nortada que tudo move. Envergaduras diversas adaptam a plumagem ao fluir do humor das aragens. Gaivotas gritam na tarde que se esvai.

A mulher caminha devagar. Os pés calcam a areia dos trilhos calcados por outros com um cuidado inusitado. Deixando pegadas suaves na superfície granulosa. Marcas que não durarão mais que minutos, padrões geométricos de umas sapatilhas de marca. Aqui e ali, baixa-se. De cócoras, e observa a vegetação rasteira, colhe uma ou outra flor e leva-as ao nariz. Às vezes à boca. Cheira-as e morde-as, mastiga-as, como botânica experimentada. Volta a caminhar contornando as rochas que afloram do caminho. Os cabelos e o vestido branco, incomum, agitam-se adaptando-se às flutuações da barometria. Às linguagens do vento. Lá em baixo, muito em baixo, o mar avança contra a verticalidade da rocha. Avança e retira-se, para voltar a avançar, esverdeado, libertando a espuma que não pertence ao sólido nem ao líquido. Alguns rebordos estão resguardados por cercas de madeira. Toros grossos protegendo transeuntes distraídos ou ariscos. Ou possuídos das duas características.

Encosta-se a um espesso travessão. Olha a paisagem campestre que morre na penumbra que se impõe. A diversidade desaparece na sombra do entardecer. A sul a Serra de Sintra ergue-se, violeta, com o castelo dos mouros rasgando a noite. Navio imponente coroado por um palácio grotesco. Gávea de amores certificados e furtivos. Etéreos e efémeros. Volta-se para o mar. O Sol baixou aproximando-se da linha do mar que toca o céu. Já nada impede a sua contemplação. Os olhos absorvem o dourado das águas e enchem-se de lágrimas. Lágrimas de ouro escaldando, escalavrando, o rosto. A memória que se desvanece enquanto filme cronológico (ou só lógico) enformando a existência.

Alguns batólitos emergem e voltam a mergulhar no tempo sem fim atingindo, caoticamente, o pensamento que se estilhaça. Criam-se e desfazem-se como a espuma que se liberta das ondas.

Ultrapassa a barreira protetora e aproxima-se da beira do abismo. Do abismo que se estende pelo silêncio da cratera hiante. Que asperge de lonjura as mnemónicas linguagens do prazer.

A imensidão do mar enegreceu e cresceu e estende-se, espesso e denso, até ao longe do mais longe.

Cheira as flores que colheu. Concentra o olhar na negritude do mar.

As últimas aves suspensas atravessam a penumbra virando costa à vida A espuma do mar recebe sem par. Quantas almas serão precisas para compor a melodia do que nos traz serenidade?

Na face da mulher entrevia-se a tristeza dos dias de antanho. Só o cair da noite desnudava as rugas que lhe cicatrizavam a alma.

Parou, subitamente. O pensamento avançou, alguns diriam, recuou; como luz na escuridão, até algures no passado. Um lugar onde jazia um homem no chão indefinido da paisagem. O sangue que encharcava a poeira breve refulgia na tarde que o amor apagara.

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publicado às 17:32


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