No café, quis pedir um rissol, mas como não me lembrava do nome do raio do frito, acabei por pedir apenas uma cerveja. Não era que não pudesse levantar-me e apontar o rissol, que raio de nome para uma coisa que se parece é com uma lua, mas não me apeteceu. O empregado deveria achar, toda a gente acha sempre alguma coisa, e raramente acerta no que acha, as ações têm sempre tantas interpretações que nem o ator sabe, muitas vezes, o que o levou a fazer aquilo que acabou de fazer , que estava com alzheimer. Quem faz, fez, e, ele próprio, acha que o fez por alguma razão qualquer que se se for bem a ver não tinha nenhuma razão para fazer.
Quando deixei o café, deitei os olhos a uma banca de rua que me pareceu de livros. Livros e ferramentas para a agricultura chamam-me sempre a atenção. Mal tinha posto os referidos olhos no tampo da mesa, um sujeito, o dono do estendal, perguntou-me se queria assinar um requerimento seu para ser candidato à presidência da República. Disse-lhe logo que sim. Lá estão as tais ações irracionais. Curiosamente, o homem não pertencia a partido nenhum. Lá assinei os papéis todos, e ainda tive que ir à carteira, para preencher a data de validade do cartão de cidadão. Já ia ao fundo da rua, quando, de repente, voltei para trás a perguntar ao candidato ao mais alto cargo da nação como se chamava. O mais provável é o homem não ganhar as eleições. Se calhar nem consegue as assinaturas necessárias para tal desiderato. Mas nunca se sabe. O investimento não foi muito grande e os ganhos poderiam ser consideráveis. Afinal, a razão ainda tem a sua importância.
Ainda não me tinha bem libertado da condição de homem cívico, cidadão interventivo na vida democrática do seu país, e já estava metido noutra. Quando passava, fugazmente, e por mero acaso, em frente ao Hospital Central, um homem com mau aspeto, numa cadeira de rodas, chamou-me. Eras, logo, de cerneira, tratamento por tu, capaz de me empurrar até ao quiosque da rotunda para comprar tabaco. Ainda não tivera tempo para responder, e já íamos a caminho da rotunda, que ficava ao fundo da rua, a uns 500 metros do hospital. Conduzir uma cadeira de rodas na cidade não é pera doce. Obstáculos de toda a ordem vão surgindo, e, às vezes, de onde menos se espera. Passeios altos sem rampa, carros e trotinetas em cima dos passeios, até os transeuntes parecem querer dificultar a progressão de quem se desloca numa cadeira de rodas. Talvez pelo aspeto do passageiro. E, que a verdade tem que ser dita, do condutor. Os dois com uma barba bíblica. Embora este último, no caso, eu, relativamente bem vestido e bem nutrido, o primeiro, o prominente transportado, mal vestido, e, manifestamente, mal alimentado. As rugas da parte da face visível eram canyons profundos desaparecendo na farta pilosidade. Muitas pessoas que nos encontravam saudavam o indigente. À distância. À volta, quando o empurrava até à porta do hospital, onde estava internado, e donde se tinha escapado, sem autorização, para ir comprar tabaco, contou-me que era muito conhecido em S. Brás e Faro. Por bandidagem e ladroagem. Já tinha trocado balas com a polícia, mostrou-me as cicatrizes na barriga das que lhe tinham acertado, e passado uns anos na cadeia. Quando o deixei no local pretendido, ainda me pediu cinco euros. Menti-lhe, respondendo que não tinha. Não levou a mal. Despedimo-nos combinando encontrarmo-nos em S. Brás num dia qualquer.
Como já era tarde regressei a casa de táxi, gastando os dez euros que tinha na carteira. Se tivesse sido generoso, teria regressado a pé. As mentiras, às vezes, dão um jeito do caraças.