Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]


perplexidades da sombra

por vítor, em 08.10.09

 

O plano foi cumprido. Agora, aqui, sentado num velho banco do cais descanso ao sol de Março. A tarde caminha, sem sobressaltos para os braços da noite. As águas mansas refluem para o mar.

O que tinha que ser feito, foi feito.

As lágrimas escaldam na face sem luz. Passam criaturas sem propósito aparente. Atravessam o meu olhar para desaparecerem para sempre. A sua imagem reflecte-se nas águas do rio, como navegadores sem barco. Para eles a tarde não se afunda na memória. É uma tarde como outra qualquer.

Para mim é um final de dia que os tempos vão suster sobre  a minha vida. Nunca outra paisagem sucederá no incerto fluir das horas. Para lá da noite, o futuro está morto. Os dias passarão iguais aos dias que virão. A vontade de conhecer a manobra dos passos encontrará a arbitrariedade  solta do tempo encalhada num fundo que prende a correnteza do devir. Os ventos anunciarão primaveras nas falas dos transeuntes e a minha solidão ecoará para sempre nesta tarde solarenga de Março.

Amava-a como uma criança que ama o seio que suga na manhã da existência.

Entrara no hospital sorrindo. Caminhava ao encontro da morte como cavalos que galopam na pradaria. Sentia  afluência do destino a massajar-me as meninges inquietas. No longo corredor desfilavam as nossas vidas. Emergiam dos rostos deslavados os sonhos parasitas da realidade. No lajedo do velho convento, reflexos de uma criatura sem futuro.De um desconhecido ao encontro das trevas.

Quando a enfermaria 118 se aproximou, perfurando os pensamentos incaracterísticos da loucura, acordo da longínqua alegria de antanho. Desoculto, então, a irrealidade hiante.

A tua face ilumina-se na penumbra tranquila da tarde. No neon que tranquiliza a sucata que te envolve.

As águas desceram tanto que os caranguejos assomam das fendas rochosas. A tarde arrefeceu brutalmente e sinto calafrios na pele brutalizada. Não tarda e as estrelas iluminarão a noite.

Não me interessa mais percorrer os caminhos que me esperam. Os tempos que inundam a paisagem., arriscam cânticos de embalar. Rituais que outrora me arrastariam no rodopiar das calmarias. Nos equilíbrios redundantes da tempestade. Agora resisto, sem peso, às carícias do devir e bloqueio, inerte, nas angustiadas perplexidades  da sombra. Aspiro a noite e sinto que ontem foi um dia  diverso de muitos outros dias. Amanhã não serei ninguém: a tua libertação soltou-me do tempo. Levito acorrentado à solidão que me consome.

Sento-me. Observo todo o universo do teu rosto. A tua tranquilidade é uma mentira. A complexa integridade dos teus passos soltou-se de ti. Por isso a morte antecipou-se à morte e, ironicamente, iluminou-te  o semblante sobressaltado com que atravessaste  os territórios movediços de outrora. O sofrimento esvaiu-se na dor. A dor metamorfoseou-se em serenidade. A minha missão é unir-te ao além. Cingir o passado e o futuro com a diversidade do que éramos quando podíamos caminhar de mãos dadas na irredutível personagem que construímos.

Com a impunidade de um sábio, retirei os tubos que te mantinham palpitante. A doença cedeu perante a morte. A panóplia tecnológica horizontalizou e instalou-se na cidade um murmúrio indizível.

A maré baixara consideravelmente e na lama de breu as bocas de cavalete matraqueavam ritos de amor. Paradas nupciais inconsequentes.

 

Portimão/Monte Gordo, 13/17/03/09

 

(este texto é para o meu amigo Mário que soube renascer do caos)

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 13:47


Mais sobre mim

foto do autor


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Posts mais comentados


Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2022
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2021
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2020
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2019
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2018
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2017
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2016
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2015
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2014
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2013
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2012
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2011
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2010
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2009
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2008
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2007
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
  222. 2006
  223. J
  224. F
  225. M
  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D