Toda a vida sonhei com uma vida normal. Diria mesmo que foi o único sonho que alguma vez ousei alimentar. Eu acordava de manhã e levava-te o pequeno-almoço à cama, ou acordavas tu e trazias-me o café sem açúcar e as tostas com manteiga que nunca tenho tempo de torrar. Normalmente saio de casa em jejum, a isso me obrigam os atrasos incorrigíveis. É assim com quem não se disciplina. Horas para me deitar não tenho, horas para acordar são-me impostas. Sempre sonhei com o oposto, uma vida normal. Poder fumar descansadamente o primeiro cigarro do dia. E folhear o jornal e passar-te os dedos pelo cabelo, olhar o teu rosto sorridente e não pensar sequer no que vestir porque o teu sorriso é o sol de que necessito para me manter quente no Inverno e confiante no Verão. Eu sempre sonhei com uma vida normal, uma casa pequena com quintal, um cão, um trabalho simples. Fins-de-semana sentados no alpendre a ler romances russos, uma cerveja ou duas para salgar o desejo e trabalhos de bricolage para enganar a incompetência. Desajeito-me com a vida, não distingo o estuque do salitre, um martelo de uma bigorna, um alambique de uma fornalha. Toda a vida sonhei com piqueniques ao domingo, a toalha axadrezada estendida sobre as ervas, um sumo de laranja natural, fruta fresca da época, uma sesta ao som do vento que amaina os pinheiros. Eu sempre quis nadar de costas, não sei onde fui buscar esta tendência para o prego. Ainda me safo a imitar os cães, pouco mais que isso. Quando era criança pensava que iria crescer como as plantas que crescem dentro das vidas normais, regadas por semanas de trabalho prazenteiro e fins-de-semana temperados por comédias românticas, caminhadas na serra, passeios junto ao mar. Eu queria coleccionar qualquer coisa que me ocupasse o espírito e distraísse dos desastres, calendários, porta-chaves, esferográficas, moedas, selos, borrachas, amostras de perfume ou sabonetes, pacotes de açúcar, chávenas de café. Queria uma colecção normal para dias normais numa vida normal. Tudo isso me escapou por entre os dedos como um polvo escapulindo-se do arpão. Vê no que deram os sonhos: acordamos ao som dos peidos um do outro, queixamo-nos do caril, das natas, do jantar da noite passada. Lavamos os dentes enquanto olhamos mais um cabelo branco, uma ruga, um ponto negro nascido da velhice anunciada. Fugimos de casa com o estômago vazio e as retinas coladas aos ponteiros do relógio, sempre mais ligeiros, astutos, ágeis do que a nossa incontrolável flacidez. O tempo antecipasse-nos, chegamos sempre atrasados ao tempo porque insistimos em adiar tanto a partida como a chegada. Para nós, o que importa é iludir a inevitabilidade dos horários, dos calendários, das planificações, dos mapas e das grelhas, não daquelas onde libertamos a carne da gordura, mas das outras, as terríveis grelhas onde assamos os nossos próprios ossos, onde vamos deixando a pele como quem desgasta uma borracha ou queima uma vela. E depois passam-se os dias, regressamos a casa estafados, sentamo-nos à mesa a fingir que ainda existimos, oferecemos ao estômago a alegria de uma alheira que nos justificará os peidos da manhã seguinte. Calamos as mágoas com dois ou três ou quatro copos de vinho e mais um cigarro em silêncio, ligamos a televisão num canal que nos distraia de nós próprios e adormecemos com os olhos postos no vazio. Logo nós, que sempre sonhámos com uma vida normal. Eu, pelo menos, sonhava. Julgo que tu também.