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O filósofo e poeta Luís Serguilha falando-nos dos tempos de hoje e dos tempos dos tempos.
Em Tavira, as "marchas populares" mataram o S.João. A foleirice-pimba arrasou a festa popular, espontânea e autêntica.
Alguns ficaram para trás
o caminho tinha buracos e sabiam-no
abismos laterais
e não os temeram.
Uns soçobraram nos primeiros palmos da curta jornada
atarantados pelo súbito levantar dos cabelos.
Os que presenciaram a aspiração das almas,
caíram um pouco com eles, mas continuaram a trilhar
a poeira dos atalhos.
As linhas que conduzem os gritos
levam-me a terras estranhas
onde os moradores enlatam sonhos
que engolem os que não sabem esperar
pelas imposições agrestes da morte.
Em Marrakesh dormimos nas açoteias doridas
do barro tecido a kiff.
Em Amesterdão dormimos com as mulheres
que não sabiam podar laranjeiras.
Em Bordéus dormimos no átrio da estação de comboios
com lágrimas partilhadas por todos.
Quando acordámos, muitos tinham voltado atrás
o medo toldara-lhes o futuro
as suas mães cantavam nos mares originais.
Tapámos os ouvidos com cera
e os pés voltaram a rasgar as sendas desconhecidas
do acaso.
Para onde queres ser levado?
Pareceu-me ouvir
vindo da intolerância espiral
das atitudes ateológicas.
Nunca um amigo uivará na noite
sem que tudo pare
sem que o rastejar dos sentimentos
se esboroe na areia das engrenagens.
Depois do amor chegam aqueles que o amor contem
os que não deixarão de nos acompanhar
os que são a carne que restará da carne
que a terra nunca há-de aceitar.
A carga tornou-se pesada
e os pés afundaram-se nas águas rasgando o caminho,
impossibilitando a progressão de alguém na poeira lavrada.
Mesmo assim teimámos seguindo os mortos esquecidos
os sem rosto ecoando antanho nos labirintos.
És a espuma silenciosa que se alevanta na proa
revolvendo as correntes inadvertidas do tempo
o nevoeiro que oculta a insensata correria
dos deuses.
Os homens não são o que a natureza quis para si,
os frutos contêm os genes da podridão
que alimentam o que renasce da escuridão prenhe de sabedoria
Olhas, então, para trás.
Nada do que vês te é íntimo.
As pegadas cruzam-se em bebedeiras estéreis,
em estratagemas frágeis que ocultam a memória.
Voltar atrás será uma aventura tão rude
como seguir em frente.
És tu que tens que decidir
sou eu quem escolherá o destino.
Resolvemos recomeçar os trilhos invisíveis
que se estendem pela imensidão do deserto!
Quantos ainda nos acompanharão?
Quantos desistiram exaustos?
Quantos voltaram a pisar os mesmos pés que os pés calcaram?
Nada interessa.
O que fazemos hoje iniciará pensamentos
anacrónicos amanhã.
E tudo recomeça a partir do lodo inicial,
nos primórdios da caminhada.
Eis senão que alguns se adiantam
e se despenham na sofreguidão da jornada
no abismo que ampara e enternece.
Refulgem na noite e alcançam
as esculturas da libertação da morte.
Nada disso me interessa, nos interessa.
Fico só
eu e a imensidão dos nossos.
Ninguém é ele próprio
todos caminham à boleia de todos.
Só quando nos excluirmos da globalização da consciência
sairemos para sempre de deus.
O esquecimento varrerá as partículas que restam
e nada será tudo (como sempre foi)
A marcha que nos conforta a respiração deixará, então,
a podridão alimentar o retorno dos corpos.
(Este será o poema que encerrará o livro "Partículas" que com ele finda até ao fim dos dias)
Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as coisas humanas postas desta maneira,
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seriam melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as coisas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as coisas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!
(Alberto Caeiro, heterónimo de Fernando Pessoa)
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