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Circulava há muito pela família, já alargada pelo tempo, que um antepassado nosso, dado, como parece a genética nos ter amaldiçoado, ou agraciado, como referem alguns, diga-se de passagem e em abono da verdade, a deambular pelas cinco partes do mundo, em viagens pelas arábias, se tinha apaixonado por uma princesa árabe. A paixão foi correspondida e, vá-se lá saber como, os pormenores, ou melhor, os por maiores, de tão desigual e complexo matrimónio, não acompanhavam a narrativa familiar, casaram e foram muito felizes. A princesa era herdeira de uma fortuna colossal, dizia-se mesmo: incalculável. Quando o sogro do nosso aventureiro feneceu, foi parar, e aqui não se sabia em que percentagem, ao amoroso casal. Acontece que a formosa e rica esposa morreu jovem e de forma inesperada, deixando a fortuna, por falta de descendência, ao inconsolável e desesperado esposo. Talvez por precaução, uma estranha e perturbadora cláusula acompanhava a fabulosa herança: só seria herdada à quinta geração do imprevisto milionário.
Ora o protagonista desta história voltou ao nosso país, constituiu família, ganhou outros dinheiros, faleceu e deixou descendência, mas o dinheiro da herança árabe ficou retido num banco que, dizia-se, iria à falência se esse montante indeterminado fosse de lá levantado. Na tal quinta geração. O tempo foi passando e as dúvidas entre gerações passadas foram baralhando os descendentes e, até, fazendo esquecer, ou pior, ridicularizar, a gigantesca fortuna. Já ninguém sabia precisar quem seria dessa tal quinta geração. Eis senão quando Zé Catrina, parente do príncipe das arábias e crente na sua pertença à sua quinta geração, trabalhador rural, homem simples, mas letrado, viu num jornal, a que costumava jogar os olhos na taberna enquanto bebia umas aguardentes com os amigos, uma notícia sobre um tesouro que estava à espera de ser levantado pelos herdeiros lá para os lados do Médio-Oriente. Com fotografia e tudo. Um casal sorridente, onde lhe pareceu logo que o jovem lhe dava ares. Era a sua cara chapada! Não tinha dúvidas. Era a dita fortuna! Pediu o jornal à taberneira e meteu-se na camioneta a caminho de Faro. Da Conceição de Tavira a Faro são trinta e dois quilómetros. Foi sorrindo até ao destino final. Já se via rico e a viver como um nababo. Toda a gente lhe sorria. A viagem tinha como destino a casa do dono da quinta onde trabalhava, advogado de sucesso na capital do Algarve. Com o entusiasmo, voava na direção da casa do causídico. A pressa não costuma ser boa conselheira. Não se sabe bem como, viu-se a cair na doca de Faro, mesmo em frente ao Hotel Eva. Com coragem e ânimo nadou com um braço, enquanto com a mão do outro erguia, como o eterno poeta, o jornal bem acima das águas da Ria Formosa. Saiu pelo seu próprio pé da doca encharcado como uma galinha acabada de atravessar uma tempestade. Infelizmente, na queda inicial, o jornal mergulhou nas águas lodosas e palavras e imagens tornaram-se uma mancha impossível de descodificar. Voltou a casa desolado.
Ao final da tarde, no ritual das aguardentes na tasca, já mais animado, contava aos seus amigos as suas aventuras. "E ali estava eu todo vestido, com sapatos e tudo, nadando com uma mão e a minha fortuna bem ao alto na outra".
Em minha casa comíamos muito peixe frito. Carapaus e charros, sardinhas, cavalas, mecharrinhas, peixe-aranha, bicas e até bogas. Quando o rei fazia anos, talvez um linguado, ou um parracho, primo afastado deste último. Só às bicas fazia cara feia. O raio do peixe avermelhado parecia-me sempre bastante seco. Também comíamos peixe assado no carvão vegetal que o meu avô produzia fazendo arder lenha debaixo de montes de terra. Com umas chaminés para que a combustão não se extinguisse. Ao fim de uma semana, quando deixava de sair fumo pelas chaminés dos montes, cavava-se os ditos e, no meio da terra calcinada, lá se destacavam as pepitas negras do precioso carvão. O peixe assado era no bom tempo. Quando os dias e as temperaturas, em conformidade, cresciam. Era outro ritual. Era sempre eu que acendia o fogareiro. Daqueles redondos em ferro forjado, de colocar no chão ou em qualquer suporte amigo das costas. Eu acendia-o sempre no chão. Uma página do Diário Popular, de que o meu pai era correspondente, e que, por isso, recebia à borla todos os dias, com um dia de atraso, que a capital do império ficava longe, amarrotado, umas palhinha e uns gravetos apanhados atempadamente, uma mancheia de carvão fino e... fogo. Acendia quase sempre à primeira, para orgulho do acendedor e espanto da minha mãe. Depois de bem arejado com o respetivo abanico de palhinha, e as brasas rubras, entregava o resto do trabalho à minha mãe que assava o peixe e o levava à mesa montada no quintal. Quase sempre ao almoço, quase sempre ao fim de semana. Os quatro, a nossa família, ao ar livre vivendo a tarde. Bem, mas era do peixe frito que me tinha lembrado e de que falava: os peixes eram fritos em óleo abundante, cobrindo-os, e a elevadas temperaturas. Como não éramos ricos, poupávamos o mais que podíamos no óleo. Faziam-se várias fritadas com o mesmo óleo. Só quando o fundo da frigideira começava a ficar castanho escuro com o depósito da saturação da combustão é que se utilizava novo óleo. Gostávamos todos muito de peixe frito e despejávamos no prato, regando o peixe nele jazente, o maravilhoso e saborosíssimo líquido acastanhado que o tinha frito. Molhávamos ainda generosamente o pão, que a avó tinha cozido no forno de lenha, no molho onde o peixe esperava. Não fora isso e o óleo durava muito mais tempo. Muitas vezes, levava para a escola a marmita de esmalte azul cheia de peixe frito para comer ao almoço. Quase sempre cavalas. Ao almoço, os moços do campo e das aldeias juntavam-se a comer peixe frito frio sentados no muro que rodeava a escola. Não gostava muito de peixe frito frio. Às vezes, alguns meninos levavam toucinho e torresmos para almoçar. Claro que toda a gente gostava de toucinho cortadinho às fatias sobre o pão das avós e, sobretudo, de torresmos. Ainda hoje não resisto a um bom par de torresmos. De peixe frito frio é que continuo a não ser grande apreciador.
PS - por falar em peixe frito. Gostava de vos anunciar que o meu amigo Luís Gorgulho inaugurou, por um dia destes, a Rua do Peixe Frito, em Santa Luzia. Vi uma fotografia, já não me lembro bem onde, da nova placa da rua e do Luís a descerrá-la, e estavam lindos.
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