Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]


A Herança da Princesa Árabe

por vítor, em 07.12.22

 

Circulava há muito pela família, já alargada pelo tempo, que um antepassado nosso, dado, como parece a genética nos ter amaldiçoado,  ou agraciado, como referem alguns, diga-se de passagem e em abono da verdade, a deambular pelas cinco partes do mundo, em viagens pelas arábias, se tinha apaixonado por uma princesa árabe. A paixão foi correspondida e, vá-se lá saber como, os pormenores, ou melhor, os por maiores, de tão desigual e complexo matrimónio, não acompanhavam a narrativa familiar, casaram e foram muito felizes. A princesa era herdeira de uma fortuna colossal, dizia-se mesmo: incalculável. Quando o sogro do nosso aventureiro feneceu, foi parar, e aqui não se sabia em que percentagem, ao amoroso casal. Acontece que a formosa e rica esposa morreu jovem e de forma inesperada, deixando a fortuna, por falta de descendência, ao inconsolável e desesperado esposo. Talvez por precaução, uma estranha e perturbadora cláusula acompanhava a fabulosa herança: só seria herdada à quinta geração do imprevisto milionário.

Ora o protagonista desta história voltou ao nosso país, constituiu família, ganhou outros dinheiros, faleceu e deixou descendência, mas o dinheiro da herança árabe ficou retido num banco que, dizia-se, iria à falência se esse montante indeterminado fosse de lá levantado. Na tal quinta geração. O tempo foi passando e as dúvidas entre gerações passadas foram baralhando os descendentes e, até, fazendo esquecer, ou pior, ridicularizar, a gigantesca fortuna. Já ninguém sabia precisar quem seria dessa tal quinta geração. Eis senão quando Zé Catrina, parente do príncipe das arábias e crente na sua pertença à sua quinta geração, trabalhador rural, homem simples, mas letrado, viu num jornal, a que costumava jogar os olhos na taberna enquanto bebia umas aguardentes com os amigos, uma notícia sobre um tesouro que estava à espera de ser levantado pelos herdeiros lá para os lados do Médio-Oriente. Com fotografia e tudo. Um casal sorridente, onde lhe pareceu logo que o jovem lhe dava ares. Era a sua cara chapada! Não tinha dúvidas. Era a dita fortuna! Pediu o jornal à taberneira e meteu-se na camioneta a caminho de Faro. Da Conceição de Tavira a Faro são trinta e dois quilómetros. Foi sorrindo até ao destino final. Já se via rico e a viver como um nababo. Toda a gente lhe sorria. A viagem tinha como destino a casa do dono da quinta onde trabalhava, advogado de sucesso na capital do Algarve. Com o entusiasmo, voava na direção da casa do causídico. A pressa não costuma ser boa conselheira. Não se sabe bem como, viu-se a cair na doca de Faro, mesmo em frente ao Hotel Eva. Com coragem e ânimo nadou com um braço, enquanto com a mão do outro erguia, como o eterno poeta, o jornal bem acima das águas da Ria Formosa. Saiu pelo seu próprio pé da doca encharcado como uma galinha acabada de atravessar uma tempestade. Infelizmente, na queda inicial, o jornal mergulhou nas águas lodosas e palavras e imagens tornaram-se uma mancha impossível de descodificar. Voltou a casa desolado.

Ao final da tarde, no ritual das aguardentes na tasca, já mais animado, contava aos seus amigos as suas aventuras. "E ali estava eu todo vestido, com sapatos e tudo, nadando com uma mão e a minha fortuna bem ao alto na outra".

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 18:36

Peixe frito e torresmos

por vítor, em 19.11.21

Em minha casa comíamos muito peixe frito. Carapaus e charros, sardinhas, cavalas, mecharrinhas, peixe-aranha, bicas e até bogas. Quando o rei fazia anos, talvez um linguado, ou um parracho, primo afastado deste último. Só às bicas fazia cara feia. O raio do peixe avermelhado parecia-me sempre bastante seco. Também comíamos peixe assado no carvão vegetal que o meu avô produzia fazendo arder lenha debaixo de montes de terra. Com umas chaminés para que a combustão não se extinguisse. Ao fim de uma semana, quando deixava de sair fumo pelas chaminés dos montes, cavava-se os ditos e, no meio da terra calcinada, lá se destacavam as pepitas negras do precioso carvão. O peixe assado era no bom tempo. Quando os dias e as temperaturas, em conformidade, cresciam. Era outro ritual. Era sempre eu que acendia o fogareiro. Daqueles redondos em ferro forjado, de colocar no chão ou em qualquer suporte amigo das costas. Eu acendia-o sempre no chão. Uma página do Diário Popular, de que o meu pai era correspondente, e que, por isso, recebia à borla todos os dias, com um dia de atraso, que a capital do império ficava longe, amarrotado, umas palhinha e uns gravetos apanhados atempadamente, uma mancheia de carvão fino e... fogo. Acendia quase sempre à primeira, para orgulho do acendedor e espanto da minha mãe. Depois de bem arejado com o respetivo abanico de palhinha, e as brasas rubras, entregava o resto do trabalho à minha mãe que assava o peixe e o levava à mesa montada no quintal. Quase sempre ao almoço, quase sempre ao fim de semana. Os quatro, a nossa família, ao ar livre vivendo a tarde. Bem, mas era do peixe frito que me tinha lembrado e de que falava: os peixes eram fritos em óleo abundante, cobrindo-os, e a elevadas temperaturas. Como não éramos ricos, poupávamos o mais que podíamos no óleo. Faziam-se várias fritadas com o mesmo óleo. Só quando o fundo da frigideira começava a ficar castanho escuro com o depósito da saturação da combustão é que se utilizava novo óleo. Gostávamos todos muito de peixe frito e despejávamos no prato, regando o peixe nele jazente, o maravilhoso e saborosíssimo líquido acastanhado que o tinha frito. Molhávamos ainda generosamente o pão, que a avó tinha cozido no forno de lenha, no molho onde o peixe esperava. Não fora isso e o óleo durava muito mais tempo. Muitas vezes, levava para a escola a marmita de esmalte azul cheia de peixe frito para comer ao almoço. Quase sempre cavalas. Ao almoço, os moços do campo e das aldeias juntavam-se a comer peixe frito frio sentados no muro que rodeava a escola. Não gostava muito de peixe frito frio. Às vezes, alguns meninos levavam toucinho e torresmos para almoçar. Claro que toda a gente gostava de toucinho cortadinho às fatias sobre o pão das avós e, sobretudo, de torresmos. Ainda hoje não resisto a um bom par de torresmos. De peixe frito frio é que continuo a não ser grande apreciador.

PS - por falar em peixe frito. Gostava de vos anunciar que o meu amigo Luís Gorgulho inaugurou, por um dia destes, a Rua do Peixe Frito, em Santa Luzia. Vi uma fotografia, já não me lembro bem onde, da nova placa da rua e do Luís a descerrá-la, e estavam lindos.

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 16:27

Cacela-a-Velha, deuses e demónios

por vítor, em 16.02.08
Cacela Velha é um lugar fantástico. Onde convergiram e convergem epifanias diversas dando a este monte- sobre-a-ria um magnetismo inexcedível . Estou a esta terra profundamente ligado desde os tempos da minha mais tenra meninice. Cacela, embora pertencendo a outra freguesia e a outro concelho, integrava-se na paróquia da Conceição e o padre das duas povoações era, portanto, o mesmo. Desta forma o pároco transportava no seu automóvel (raro naqueles tempos) os jovens da Conceição, onde residia, para o ajudarem na missa e noutros serviços religiosos. Eu, embora não baptizado e filho de ateu militante, lá ia às escondidas: a minha perdição era o repicar dos sinos. Sim porque o toque dos sinos é uma arte semiológica complicadíssima que não vem agora ao caso. Enquanto o padre despachava assuntos do foro clerical e outros..., nós batíamo-nos em jogos de futebol com os "serrenhos" de Vila Nova de Cacela ou calcorreávamos falésias e sapais somente pelo gozo de cabriolar. Brincando às escondidas ou procurando, sei lá, os deuses naquela sua morada.
Também me ligam a esta pérola-sobre-o-mar a "última morada" de muitos familiares como é o caso, entre outros, do mais ilustre: José Gil Cardeira. O "bom filho e esposo, pai e amigo" que jaz no único sepulcro que restou no cemitério velho aquando da abertura do "novo" cemitério.
É por isso que me custa o estado de abandono e de desleixo a que está votada a praça forte que foi conquistada  não pela sua importância estratégica ou política, mas pela sua beleza. Como tão bem o cantou Sophia num dos seu poemas mais de fazer pele de galinha.

Par vos mostrar beleza e desleixo deixo-vos com alguma fotografias recentes por mim registadas.

PS: Para saber mais sobre a vida deste aventureiro que jaz no cemitério velho e do qual corre nas minhas veias o mesmo sangue, consultar o livro "Memórias Escritas" onde, para além de outras histórias sobre a região, meu pai, Fernando Gil Cardeira, conta as mirabolantes estórias deste alentejano de Alvito e da "cobra  grande", que enviou para o seu Alentejo natal e que "depois de morta foi transportada em três carros de bois e o rabo ainda ia arrastando pelo chão".











Monte Gordo ao fundo,


A flamejante Ria Formosa, que aqui começa e aqui acaba...






Não se poderiam esconder fios e antenas?

E agora o desprezo:

Casa Paroquial

Uma casa de taipa ao sabor dos elementos...


O meu parente abandonado e salpicado de cal...



Uma curiosa chaminé Allgarvia ...

Há mais, muito mais mas dói-me trasladá-las para este post

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 15:31

Blogue à beira de um ataque de nervos.

por vítor, em 01.08.07


Filho adolescente no Festival do Sudoeste. Cinco dias de desassossego.

E não é que o pai foi dos tais que passou pelo mítico Vilar de Mouros? A setecentos quilómetros de casa e, vejam só, sem telemóvel.

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 14:41


Mais sobre mim

foto do autor


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Posts mais comentados


Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2022
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2021
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2020
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2019
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2018
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2017
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2016
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2015
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2014
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2013
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2012
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2011
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2010
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2009
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2008
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2007
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
  222. 2006
  223. J
  224. F
  225. M
  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D