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ombro algum

por vítor, em 15.03.23

Nunca conseguirei chorar em ombro algum. Parto e uma parte de mim fica. Resiste.

Eu mesmo plantei a flor que dei

no dia em que resolvi partir, iniciar a caminhada para esquecer. Sei que nesse caminho procurarei a distância que me poderá trazer o esquecimento, uma jornada tão longa quanto possível. De bermas envenenadas por palavras cruéis e falsas, por margens lamacentas onde crescem sacerdotisas profanas. Não sei se o sabor das ervas mastigadas, o odor intenso da daninha fragrância, é o que se desprende da pele, se o vazio que, sobressaltado, transporto . Se as sombras que me ocultam o caminho serão obstáculos insanos que a tristeza impõe, se balizas que me conduzem ao longo estertor da ausência. Seguirei, no entanto, sem olhar o que para trás ficou, levando apenas as minhas lágrimas de alegria. O antes não perturbará o que hoje conduz ao amanhã: o futuro não existe sem as inquietações de quem amanhece no princípio dos tempos, nem acorda sem esfregar os olhos como se tudo fosse como era antes de ter acontecido. Tudo renovado como se aprendêssemos a renegar a garantia do retorno. Do regresso ao que já não existe: mesmo que o queiras, que nós o queiramos, nada se mantém como era! Da manutenção do eterno emerge a potência que gera a mudança, que varre o passado e faz emergir, na onda imparável, medonha e terna, o coração que carrega a dor de se querer inerte. Riem as magnólias nas ruas desertas. O ser que erra envolto em luares sombrios derrama pelas calçadas húmidas o clamor dos peregrinos perplexos, o clamor dos maestros insolventes. Vou para além dos pensamentos antigos, onde delírios se decompoem em silencioso pulsar de desprezo. Onde a última vez foi um casamento entre opostos divinos. Não chovera nos primeiros alvores dos dias infelizes. Nunca conseguirei chorar mais do que o sacrifício dos meus dedos cansados. Os rios morrem, e, por isso mesmo, as dores dos que mortos transportas e vivos permanecem são vozes mais rebeldes do que as de vagabundos à procura de poetas da verdade, poetas exibindo a sapiência da tragédia, renegando o poder de convocar as resistências da maldade.

Um dia voltarei ao lugar que nos prende e arremessa no precipício da noite virginal.



Cativa, 19 de dezembro de 2022

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publicado às 15:58

As Vozes do Artista

por vítor, em 07.12.22

Uma das mais importantes conquistas do artista, e relevo sempre, na minha modesta opinião, que o artista é igual a qualquer outra pessoa, e que qualquer outra pessoa pode ser, já o é em bruto, um artista, é a sua voz. Não é suficiente, mas é, seguramente, condição necessária. Só quando o artista é possuído pela sua voz, se torna um criador singular. E um artista!

Como podemos facilmente constatar, hoje, e em todos os tempos, os que campeiam na praça usam, e alguns abusam, das vozes de outros. Brilham, muitas vezes sem dar por isso, e orgulhosos disso, dessa voz, nos salões, exposições e concursos, por esses campos afora.

Muitas vezes, quase sempre eles, ganham prémios e mordomias. Muitas vezes com vozes extraordinárias. Só que são vozes extraordinárias de outros. Um "plágio" subliminar, difícil de provar e, por isso, legal.

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publicado às 18:40

A Herança da Princesa Árabe

por vítor, em 07.12.22

 

Circulava há muito pela família, já alargada pelo tempo, que um antepassado nosso, dado, como parece a genética nos ter amaldiçoado,  ou agraciado, como referem alguns, diga-se de passagem e em abono da verdade, a deambular pelas cinco partes do mundo, em viagens pelas arábias, se tinha apaixonado por uma princesa árabe. A paixão foi correspondida e, vá-se lá saber como, os pormenores, ou melhor, os por maiores, de tão desigual e complexo matrimónio, não acompanhavam a narrativa familiar, casaram e foram muito felizes. A princesa era herdeira de uma fortuna colossal, dizia-se mesmo: incalculável. Quando o sogro do nosso aventureiro feneceu, foi parar, e aqui não se sabia em que percentagem, ao amoroso casal. Acontece que a formosa e rica esposa morreu jovem e de forma inesperada, deixando a fortuna, por falta de descendência, ao inconsolável e desesperado esposo. Talvez por precaução, uma estranha e perturbadora cláusula acompanhava a fabulosa herança: só seria herdada à quinta geração do imprevisto milionário.

Ora o protagonista desta história voltou ao nosso país, constituiu família, ganhou outros dinheiros, faleceu e deixou descendência, mas o dinheiro da herança árabe ficou retido num banco que, dizia-se, iria à falência se esse montante indeterminado fosse de lá levantado. Na tal quinta geração. O tempo foi passando e as dúvidas entre gerações passadas foram baralhando os descendentes e, até, fazendo esquecer, ou pior, ridicularizar, a gigantesca fortuna. Já ninguém sabia precisar quem seria dessa tal quinta geração. Eis senão quando Zé Catrina, parente do príncipe das arábias e crente na sua pertença à sua quinta geração, trabalhador rural, homem simples, mas letrado, viu num jornal, a que costumava jogar os olhos na taberna enquanto bebia umas aguardentes com os amigos, uma notícia sobre um tesouro que estava à espera de ser levantado pelos herdeiros lá para os lados do Médio-Oriente. Com fotografia e tudo. Um casal sorridente, onde lhe pareceu logo que o jovem lhe dava ares. Era a sua cara chapada! Não tinha dúvidas. Era a dita fortuna! Pediu o jornal à taberneira e meteu-se na camioneta a caminho de Faro. Da Conceição de Tavira a Faro são trinta e dois quilómetros. Foi sorrindo até ao destino final. Já se via rico e a viver como um nababo. Toda a gente lhe sorria. A viagem tinha como destino a casa do dono da quinta onde trabalhava, advogado de sucesso na capital do Algarve. Com o entusiasmo, voava na direção da casa do causídico. A pressa não costuma ser boa conselheira. Não se sabe bem como, viu-se a cair na doca de Faro, mesmo em frente ao Hotel Eva. Com coragem e ânimo nadou com um braço, enquanto com a mão do outro erguia, como o eterno poeta, o jornal bem acima das águas da Ria Formosa. Saiu pelo seu próprio pé da doca encharcado como uma galinha acabada de atravessar uma tempestade. Infelizmente, na queda inicial, o jornal mergulhou nas águas lodosas e palavras e imagens tornaram-se uma mancha impossível de descodificar. Voltou a casa desolado.

Ao final da tarde, no ritual das aguardentes na tasca, já mais animado, contava aos seus amigos as suas aventuras. "E ali estava eu todo vestido, com sapatos e tudo, nadando com uma mão e a minha fortuna bem ao alto na outra".

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publicado às 18:36

Um ser estranho

por vítor, em 04.11.22

Nada há de mais medonho do que a imortalidade. O ser para sempre. Sem obstáculos nunca haveria sombras. Eras, enquanto te conheci, um ser estranho: procuravas na obscuridade desejos insondáveis.

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publicado às 13:28


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