Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
O Zé Alqueva é o melhor pedreiro que conheço. As obras cá da quinta são todas feitas por ele. Há uns anos, desenhei uma casa e apresentei-lha para a construirmos. É a belíssima casa de turismo rural que temos aqui na Cativa. Com uns reparos do mestre, lá foi, aos poucos, nascendo uma casa de habitação onde antes era o armazém agrícola do meu avô. Construímos é uma forma de dizer: construiu-a o Zé, que eu tenho o meu tempo ocupado a trabalhar para as coisas da mercearia. O mestre Alqueva é um perfecionista. Usa os materiais tradicionais como ninguém e gosta do que faz. Às vezes irritava-se com as minhas sugestões patéticas ou com os materiais que eu arranjava para tornar a casa (achava eu) mais bonita. Curiosamente, e para meu espanto, não levantou objeções a chaminé da lareira que desenhei e que se ergue ao céu. Já com os azulejos da cozinha o homem atirou-se ao ar: cada um é uma peça única no tamanho, na espessura e na textura, o que acarretava um trabalho brutal e moroso de colocação. Um dia, cheguei a casa e encontrei-o a chorar convulsivamente sem conseguir pronunciar uma palavra. Pensei que lhe tivesse morrido um filho, a mulher, o pai ou a mãe, mesmo sem saber se os tinha. Quando, passado um bom bocado, conseguiu balbuciar coisa que se entendesse, disse-me, aos repelões, que tinha morto a Perdida. Atropelou-a quando fazia marcha atrás com o seu pequeno camião. A Perdida era uma cadela. Como o próprio nome revela, apareceu, sem se saber de onde, na Quinta e de cá mais não saiu. Afeiçoámo-nos a ela e, mesmo já tendo um cão (temos sempre um cão, às vezes dois, mas sempre machos pelo que a Perdida seria uma exceção na linhagem dos guardadores cá do sítio), ficámos com ela. O mestre Alqueva era o que mais tempo passava com ela. Os moradores da casa e donos da aparecida saíam pela madrugada e só regressavam pelo final da tarde. A hora do almoço era o grande momento de convívio. Comiam juntos e partilhavam mesmo as refeições. No final davam um passeio entre as laranjeiras. Homem prático, em lágrimas, pegou no cadáver a esvair-se em sangue, colocou-a na caixa do camião e enfiou-a num contentor do lixo. Depois da morte tudo é lixo, disse-me, filosoficamente, ante o meu desagrado com o desfecho. Eu, um sentimental e protetor da saúde pública, costumo dar-lhes (aos meus gatos, cães e galinhas) um funeral mais condigno. Abro uma cova à enxadada, deposito o amigo docemente no fundo e cubro-o com a terna terra da Quinta. Vem este longo confuso texto a propósito de uma certa resposta a uma certa e determinada, e inconveniente, questão que um dia fiz ao meu-mestre-de-obras. Zé!, porque é que não arranjas uma boa equipa e, com a tua arte e sabedoria, não te pões a ganhar dinheiro a sério construindo casas e não te deixas de biscates para a vizinhança? Respondeu-me assertivo e sintético. Eu sou um homem estranho! Nunca mais falámos no assunto e regressámos aos interessantes temas de antanho: mulheres boas e futebol. A supra citada e certeira resposta a uma, também referida, questão inconveniente, deveria ser a deixa às constantes, e seguramente inconvenientes, questões dos meus amigos leitores; e refiro leitores, porque a maior parte dos meus amigos nem lê nem sabe que eu escrevo; que já navegaram nas minhas palavras. Então, quando é que publicas essas escrituras ocultas? Quando é que te podemos arrumar na estante? Se não o faço é porque achariam a resposta um contra senso. Não é o escritor um gajo estranho?
PS: O Zé Alqueva tem uma escrita impressionante, única e idiossincrática, como se quer para quaisquer escritores. Nos papéis que me entregava à sexta-feira para justificar o pagamento, chegava a dar três erros ortográfico na mesma palavra. Por exemplo: “sementu” em vez de cimento ou “cervisu” em vez de serviço. E o que é que isso interessa? Não reparou o escriba das presentes palavras que num poema já blogado e facebucado vinham três, digo três, arreliadoras burradas. Já agora, para o envergonhar, aqui vão elas: embriaguês, perconceito e, vá lá, equilibrio ( fosga-se, o que tive de lutar contra o corretor para as escrever assim). Viva o erro ortográfico, ele representa para a escrita o que o nu representa para a pintura (só para chatear, estive quase a pôr assento, digo acento, agudo no nu).
«degraus, patamar & queda». 50x50 cm, técnica mista sobre tela. Set 2010.
Título, desenho e ideia gentilmente surripiados (sem a devida autorização, claro) ao meu amigo (e também fabuloso - nos dois sentidos - escritor e poeta) José Carlos Barros.
Diria, ainda, não acrescentando nada à supra furtada obra, que desde que o homem passou a poder fabricar lâminas que duram toda a sua vida, por mais longa que venha a ser e por mais "rasages" que leve a cabo, o capitalismo ficou condenado ao afundanço cruel e sem agravo. UFA!!!
Ontem, enquanto lia o jornal na esplanada do Casal, em Vila Nova de Famalicão, os olhos brilharam-me, subitamente, na sombra centenária dos plátanos. Uma fotografia de um querido amigo encimava a página 13 do jornal (a página 13 de uma sexta feira 13 - coincidências, meras coincidências), o sorriso foi-se abrindo, até quase à gargalhada suave: "O escritor, dramaturgo e antropólogo António Pocinho, autor de Elucidário Sexual, Pés frios dentro da Cabeça - (a gargalhada enrola nos lábios perplexos) - ou A Ilustre Máquina de Ramires, - ( a gargalhada rebenta na face como pára-quedista que estoura no chão com o pára- quedas por abrir, e acodem-me gritos que sacodem a memória e me arrastam num sofrimento indizível até aos confins da dor) - morreu quarta-feira, em Tomar, aos 52 anos..."
Na terra dos antepassados, que nos pré-existem e que nos sucederão, onde o principio e o fim, o nascimento e a morte, fecham o ciclo da cultura, apresentaremos o brutal teatro que nos envolveu a vida.
Uma pequena parte do imponente cemitério de âncoras do Barril
O Verão continua por estas paragens do Sul. 30 graus durante o dia. No outro dia fui ao Barril dar o último mergulho da temporada. Simplesmente do outro mundo. Longo passeio a pé atravessando o sapal, a miríade de canais da ria e o cordão dunar. Com a Serra Algarvia a correr a Norte, cinzenta e ondulada: com os sobressalentes Mama Gorda, Cerro da Cabeça e Cerro de S. Miguel a iluminarem o mar. Marcas de terra de pescadores e outros navegadores, ao longo dos tempos. Os aglomerados populacionais brancos de Cabanas, Conceição, Vale Caranguejo, Tavira e Santa Luzia a espreitar a Ria. Quem não se sentir com forças para os 3 kms (ida e volta) da viagem a pé, há sempre o comboinho que faz o trajecto pachorrentamente.
Junto à praia as magníficas construções da antiga Armação do Barril (pesca do atum), agora transformadas em apoio turístico, proporcionam um bom descanso para a jornada de volta.
Na praia, quase deserta, um longo banho nas águas quentes do Atlântico, uma boa companhia, um dormitar sobre as areias finas, enfim... quase o dito paraíso. Mesmo para quem não acredita.
Quando era adolescente, passava o Verão na praia: manhãs, tardes e...noites. Noites longas à luz da fogueira, guitarras espalhadas pela areia e as francesinhas do Club Mediterrané acariciando o luar.Tornava-me castanho escuro, os cabelos (longos) ruivos e o corpo salgado de meses. Agora, que cheguei à meia-idade (?), raramente vou à praia. Nada me faz passar horas a escaldar ao sol. Só os longos passeios, os mergulhos no mar e os amigos me conseguem levar algumas vezes até ao areais da Ria Formosa. Chego a ir mais vezes de Inverno do que de Verão. As multidões que se apinham à beira-mar deprimem-me e não gosto muito de voltar aos lugares onde fui feliz. Ao Verão de outrora.
O Verão continua sem sobressaltos e eu não estou inquieto como de costume, quando isso se verifica. Estou em plena campanha da alfarroba e não quero que chova. Se chove não se pode andar na labuta e as ervas dificultam bastante a apanha do chão, Este ano atrasei-me bastante na apanha e tive até de contratar um trabalhador que tem feito a maior parte do trabalho. Afazeres múltiplos e um filhote que foi este ano para a universidade em Lisboa têm-me impedido de participar em pleno na campanha tradicional de fim de Verão. O trabalhador que contratei também não tem ajudado na velocidade de cruzeiro da apanha: vem um dia, falta dois; vem dois dias seguidos, falta o resto da semana; pago-lhe o salário, falta uma semana. O trabalhador é uma figura grada da literatura portuguesa, o que muito honra a Quinta, e só isso impediu a sua dispensa por negligência no trabalho. O Verão tem estado do seu lado e isso é bom para os dois: patrão e trabalhador. Quanto ao escritor, deixo para um próximo post a sua identidade. Para quem conhece a sua obra, aqui deixo um dos seus poemas.
Que nuvem se desfez sobre aminha cabeça
arrancando o verde do verde
apagando o azul do mar do mar azul
abatendo meus barcos na inavegável babugem?
Quem cobriu de fuligem o sol branco dos malmequeres
quem construiu casas vazias por cima dos caracóis
quem mandou à merda os pássaros perdoáveis?
Que nuvem era essa
com figura de humano
a tirar macacos do nariz?
Há noites assim...
a cabeça não se deita deitada...
um imorredoiro assobio percorre,
percorre...
Penetro os assuntos das mobílias interiores
apanho uma lua, quase apanho uma lua
Há noites assim:
companheira companheira
apenas a irresistível cadeira...
Quem adivinha o nome do trabalhador intermitente?
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.