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O Zé Alqueva é o melhor pedreiro que conheço. As obras cá da quinta são todas feitas por ele. Há uns anos, desenhei uma casa e apresentei-lha para a construirmos. É a belíssima casa de turismo rural que temos aqui na Cativa. Com uns reparos do mestre, lá foi, aos poucos, nascendo uma casa de habitação onde antes era o armazém agrícola do meu avô. Construímos é uma forma de dizer: construiu-a o Zé, que eu tenho o meu tempo ocupado a trabalhar para as coisas da mercearia. O mestre Alqueva é um perfecionista. Usa os materiais tradicionais como ninguém e gosta do que faz. Às vezes irritava-se com as minhas sugestões patéticas ou com os materiais que eu arranjava para tornar a casa (achava eu) mais bonita. Curiosamente, e para meu espanto, não levantou objeções a chaminé da lareira que desenhei e que se ergue ao céu. Já com os azulejos da cozinha o homem atirou-se ao ar: cada um é uma peça única no tamanho, na espessura e na textura, o que acarretava um trabalho brutal e moroso de colocação. Um dia, cheguei a casa e encontrei-o a chorar convulsivamente sem conseguir pronunciar uma palavra. Pensei que lhe tivesse morrido um filho, a mulher, o pai ou a mãe, mesmo sem saber se os tinha. Quando, passado um bom bocado, conseguiu balbuciar coisa que se entendesse, disse-me, aos repelões, que tinha morto a Perdida. Atropelou-a quando fazia marcha atrás com o seu pequeno camião. A Perdida era uma cadela. Como o próprio nome revela, apareceu, sem se saber de onde, na Quinta e de cá mais não saiu. Afeiçoámo-nos a ela e, mesmo já tendo um cão (temos sempre um cão, às vezes dois, mas sempre machos pelo que a Perdida seria uma exceção na linhagem dos guardadores cá do sítio), ficámos com ela. O mestre Alqueva era o que mais tempo passava com ela. Os moradores da casa e donos da aparecida saíam pela madrugada e só regressavam pelo final da tarde. A hora do almoço era o grande momento de convívio. Comiam juntos e partilhavam mesmo as refeições. No final davam um passeio entre as laranjeiras. Homem prático, em lágrimas, pegou no cadáver a esvair-se em sangue, colocou-a na caixa do camião e enfiou-a num contentor do lixo. Depois da morte tudo é lixo, disse-me, filosoficamente, ante o meu desagrado com o desfecho. Eu, um sentimental e protetor da saúde pública, costumo dar-lhes (aos meus gatos, cães e galinhas) um funeral mais condigno. Abro uma cova à enxadada, deposito o amigo docemente no fundo e cubro-o com a terna terra da Quinta. Vem este longo confuso texto a propósito de uma certa resposta a uma certa e determinada, e inconveniente, questão que um dia fiz ao meu-mestre-de-obras. Zé!, porque é que não arranjas uma boa equipa e, com a tua arte e sabedoria, não te pões a ganhar dinheiro a sério construindo casas e não te deixas de biscates para a vizinhança? Respondeu-me assertivo e sintético. Eu sou um homem estranho! Nunca mais falámos no assunto e regressámos aos interessantes temas de antanho: mulheres boas e futebol. A supra citada e certeira resposta a uma, também referida, questão inconveniente, deveria ser a deixa às constantes, e seguramente inconvenientes, questões dos meus amigos leitores; e refiro leitores, porque a maior parte dos meus amigos nem lê nem sabe que eu escrevo; que já navegaram nas minhas palavras. Então, quando é que publicas essas escrituras ocultas? Quando é que te podemos arrumar na estante? Se não o faço é porque achariam a resposta um contra senso. Não é o escritor um gajo estranho?
PS: O Zé Alqueva tem uma escrita impressionante, única e idiossincrática, como se quer para quaisquer escritores. Nos papéis que me entregava à sexta-feira para justificar o pagamento, chegava a dar três erros ortográfico na mesma palavra. Por exemplo: “sementu” em vez de cimento ou “cervisu” em vez de serviço. E o que é que isso interessa? Não reparou o escriba das presentes palavras que num poema já blogado e facebucado vinham três, digo três, arreliadoras burradas. Já agora, para o envergonhar, aqui vão elas: embriaguês, perconceito e, vá lá, equilibrio ( fosga-se, o que tive de lutar contra o corretor para as escrever assim). Viva o erro ortográfico, ele representa para a escrita o que o nu representa para a pintura (só para chatear, estive quase a pôr assento, digo acento, agudo no nu).
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