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No campo devastado os cadáveres apodrecem ao Sol. Foi decidido pelo rei
Que só os necrófagos poderiam tocar nos corpos em sangue. Tens o teu irmão entre os mortos
Que incham ao sol clemente de agosto. Os gemidos varrem a planície da batalha e ninguém
Ousa aproximar-se. Ninguém, sequer, ousa aproximar o olhar.
Tudo apodrece naquela tarde resplandecente de sangue e morte, de heróis mortos, heróis moribundos e mortos. Ninguém festeja nada que a dor se ergue como montanha de medo. Como sabre esquartejando a noite que se aproxima. A noite que tudo esconde e tudo revela: já é noite quando te levantas do catre fedendo a dor; fora da tenda uma Lua febril chicoteia, ao longe, o campo de batalha; caminhas como se fosses um vento sem destino que não a morte; procuras por entre os cadáveres de cavalos e homens – um equino uivante escoiceia o ar carregado de pó e sangue, escoiceia e bufa -; um homem com uma fratura exposta no coração – cedendo perante o abismo de fogo e fuligem escaldante, fundido à espada que o não protegeu – agarra-te a perna tremente. Continuas evitando o ferro e os corpos jazentes, cegaste e nada vês. Só o amor te conduz e pensas-te como criança, os teus pais, os nossos pais e nós. Crianças como todas as outras. Só os adultos têm sonhos para as crianças. As crianças só querem viver. E viver é brincar. Sempre. Com tudo e com nada. E é por isso que não tens como deixar de desobedecer ao teu rei.
Quando te aproximas do teu sangue frio, parado nas artérias e veias que também são tuas, um suor gelado escorre-te do corpo. Os olhos fitam os olhos. Os teus brilhando à Lua fitando o fim. Os meus afogados em lágrimas por tudo o que fomos e ainda seremos. Afogamos em dor. A dor de antanho e a de agora. A dor que transportarei para sempre como para sempre te arrastarei para longe onde não te sintas abandonado.
Era já tarde na noite de todas as decisões, e o rei dormia agitado. Volteava e gritava na noite única e infinita.
A sombra de um homem carregando o cadáver ainda morno de um irmão escorrendo sangue atravessou o campo de batalha, pisando as almas que se libertavam das armaduras moribundas e tropeçando nos gritos dos cadáveres abandonados. Carregou-o até ser dia e, depois de o ter deixado em paz, voltou para o seu rei.
O dia seguinte seria de festa e júbilo.
A passagem conforta os que não têm nada
os que procuram
os que nunca encontram.
A passagem é um caminho que reflecte as sombras do passado
enquanto dormem os inúteis sobressaltos.
Há gente que precisava de mais vidas para amar
os sinuosos tremores da paixão
as escolhas impossíveis e imateriais
os labirintos claros da impotência que sopra da juventude
difusa, larvar e narcótica.
A passagem une o que respira ilusão.
Os sonhos são a realidade por cumprir
quando da solidão nasce a palavra que embriaga
que sorve o conforto incontornável das distâncias.
Há gente que precisa de mais vidas para sofrer.
Tinha um ar tão grave quanto se podia imaginar e mesmo assim sorria. Sorria às coisas. Pronto. Tudo se passou como uma brisa contra a tempestade ( aliás previra-o ). Quantos calafrios a atravessar a noite poeirenta. A vida.
Apeteceu-me chorar pedaços de carne. Da minha carne.
Há um mundo a desabar sobre o meu ( que já não chamarei mundo nem terei coragem de apelidar ), com asas grandes a afastar as únicas borboletas que restam do meu amor. Uma auto - estima inútil e nua. Perdi todas as correntes e esqueci todas as portas. Quase todas... ( é próprio dos moribundos agarrar freneticamente um sonho esfaqueado )
O céu fundia-se como o ribombar dos trovões na mente dos aflitos. Multidões de gritos, como abutres, esperam o cair da noite. À noite as flores entregam-se a si. À noite ninguém assassina flores.
Não existem recordações de infância onde os sentimentos flutuam em convulsões febris. A minha dor não tem memória, mesmo não podendo imaginar dores sem memória, por isso é irreversível, sem origem. Como a noite que cai...
Nas asas do sono brincam sorrisos rodopiando eternamente ao vento.
Há nuvens à esquerda incapazes de me tocar, receando perder a capacidade de estar sós.
Perdão, a noite cai. O Sol, e eu, vamos para o outro lado da penumbra.
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