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Alforrecas e moelas

por vítor, em 15.08.22

 



Tinhas perguntado sobre o porquê das alforrecas aparecerem mortas nas praias, e eu, sem saber como responder, retorqui cinicamente, talvez até maliciosamente, que era o sinal do seu fracasso, a desistência de continuar: enfim a aceitação do que o fim determina. E então porque continuam a provocar comichões várias nos incautos caminhantes nas espumas da maresia? Não será isso um sinal de resistência à morte. Diria, que de alforrecas, tenho que ser sincero, pelo menos comigo mesmo, nada percebo ou entendo, o que qualquer leigo poderia dizer sobre assuntos transcendentes e etéreos: nada do que me fascina me espanta. O gozo torna-se sempre mais cortante, coerente, diriam alguns, e até, digo-o com alguma legitimidade, mais íntimo quando desconhecemos o caminho que trilhou até nos atingir. Se for à traição, melhor!

O tempo, que estava quente, passava dolente. Nas entranhas dos pássaros acoitavam-se grãos de sabedoria indeterminada. As moelas nunca paravam. Eternas enquanto os corpos se dispunham a continuar.

Demos as mãos e fomos pela praia fora indiferentes ao destino das gelatinosas criaturas que iluminavam a babuja. Todavia, evitando a sua indesejável adjacência.



Pisa, 1 de agosto de 2022

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publicado às 15:54

Destroços

por vítor, em 08.04.19

Ele anda comigo para todo o lado. Só tenho um, mas pode-se comprar, e receber, sem sair de casa. Com os portes sai "caro", mas, garanto, vale bem a pena. E, no fim, vai tornar-se barato. Bem barato.🙃
https://www.bubok.pt/livros/11730/DESTROCOS

Antologia de textos retirados de outros livros do autor. Contos absurdos e paradoxais que relatam vidas de vagabundos que se passeiam em vidas inacabadas e estranhas. Antropólogos competentes, coveiros, homens sem vida que se lhes conheça, poetas medíocres, mulheres desprovidas de memória, escritores sem talento, criaturas intangíveis e loucas, enfim, seres idiossincráticos que navegam à vista perdidos na imensa pradaria do sonho. Pesadelos que se impõem como forma de vida.

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publicado às 19:38

7 contos ilustrados

por vítor, em 12.10.15

contos ilust.s

 E diz, entre outras coisas muito interessantes, o grande Miguel Real no prefácio da obra: "...e a grande novidade temática e estilística do fantástico sem terror e muito amor do anjo que procura ser homem, descendo às profundezas minéricas do Hades para depois, já sem a impeditiva asa celestial, se tornar definitivamente “homem à procura da eternidade” (“O amor é uma fuga sem fim”, de Vítor Gil Cardeira, indubitavelmente uma das melhores narrativas desta Antologia) – o conjunto destes contos evidencia um novo tratamento do tempo e da actualidade quotidiana que se pode sintetizar na conhecida frase de José Saramago “o tempo é todo um”."

http://www.wook.pt/ficha/7-contos-ilustr-s/a/id/16898047

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publicado às 16:38

Cicatrices

por vítor, em 22.03.15

cicatrices.jpg

Ver e comprar...

Sem peias de olheiros, editoras, livrarias, críticos, amigos e outros possíveis censores, aqui está ele rasgando a planície. Sai um bocadito caro (pode-se sempre descarregar em PDF por 1 €), mas vale a pena. E nem é preciso sair de casa...
A obra tem a chancela das "edições Cativa" que promete, para sossegar consciências mais sensíveis, publicar brevemente outro livrito, agora de poesia, seguindo os canones tradicionais. Agora neste, depois de preparar a semente, semear, acarinhar, colher e ir ao mercado vender, quem manda sou eu!...

Contra, sem ofender, o canone; todas as páginas têm número (todas as páginas têm o mesmo valor), com cores diferentes da capa para a contracapa e lombada, sem a referência à editora na capa; este é um livro desalinhado e assombroso. Um livro livre!

Contos, alegorias, aforismos, pensamentos. Um livro que faz a ponte com o anterior livro do autor, Transeuntes, e que escava ainda mais no corpo e na alma dos que, como as sombras, se ocultam na noite...

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publicado às 22:18

ESTUPIDA - no tempo das romãs

por vítor, em 24.02.13

Foto: no tempo das romãs - um conto meu na ESTUPIDA

À mesa no Piolho...

 

ESTUPIDA Magazine é uma publicação Edições Mortas, Black Sun editores e N edições.

Colaboram neste primeiro número :

Alexandra Antunes | Teixeira Moita | Luís Ferreira |


Fernando Esteves Pinto | Humberto Rocha | Théodore Fraenckel

|
Carlos Marinho Rocha | Név Vie |

Vítor Gil Cardeira |

António Pedro Ribeiro | Miguel Sá Marques | Raul Simões Pinto |

Rui Tinoco | Rui Caeiro | (autor desconhecido)

Director António S. Oliveira | arranjo gráfico: mão pesada |

Todos os artigos são da responsabilidade dos seus autores.

Depósito Legal: 21200404

300 ex. Janeiro 2013



 

No tempo das romãs

 

 

 

Sempre que a noiva comia romãs, tremia. Era como se um tufão se aproximasse da costa. A romã atuava nela como um poderoso afrodisíaco. Quando o tempo das chuvas chegou, devagar como convém nos secos clima mediterrânicos, a preocupação invadiu-me secretamente. Não tinha sido diferente naquele ano.

 

Do verde amarelado, foram abraçando o vermelho erótico e clamando pelo passante. O dito era eu, na maior parte das vezes. Mas, na calmagem dos caminhos calcários pousavam, por vezes, pés descalços e dançantes: era ela, a minha noiva.

 

Conhecia-a há três anos. Doce como o fim das tardes de verão sem vento, bela como só eu sabia, arrancou-me o coração no primeiro momento. O futuro toldou-se-me num tempo irrecuperável e incerto, como a filosofia que atrai multidões sequiosas de sangue. E diria ainda mais; a solidão recuperou o seu significado supremo: a dor sem possibilidade de sentir o prazer do coração aflito. Eu, para quem a independência era a vida. Nesse dia, há muito esquecido, entrou em mim uma luz que me sequestrou do mundo  e me enlaçou na morna sepultura do, dizem, amor.

 

Era doce como a tarde que se faz esperar. Como o caruncho da noite que não vem. Chegou e ocupou o lugar que era meu. Ocupou ainda mais de mim do que eu alguma vez teria ocupado.

 

Há três anos, era eu um rodopio fogoso e despreocupado, alegre e bondoso. As alegrias da vida percorriam o meu corpo como se ele fosse uma estrada em linha reta e sem ondulações. Passavam sem deixar marcas e o gozo era intenso mas efémero, como convém a um jovem à procura dos sentidos da vida. As próprias pegadas que deixava impressas nos terrenos virgens da existência desapareciam como sombras que as nuvens projetavam nas paisagens inacabadas do devir. Um filme sem fim a caminho do futuro interminável. Os dias sucediam-se sem memórias que me fizessem olhar para trás. Nem sequer para o hoje que se esvaia nas penumbras da noite. Alguns escombros que se atravessavam nos caminhos difusos da jornada eram transpostos com a facilidade da juventude que me tornava eterno e irresponsável. Mas como mudei em três anos! Vivia para ela e vivia dela. Os dias passavam e a embriaguez sussurrante das fímbrias dos seus vestidos entaramelavam-se nos meus sentidos. Relia no meu corpo a sensação cruenta e terna dos afagos de minha mãe. Os pensamentos não engrenavam no segmento seguinte e encavalitavam-se em cacos de ideias incompreensíveis e dolorosas. A amálgama de ideias impedia-me a ação. Ruminava imagens sem profundidade de campo de onde emergia o seu corpo envolto em roupagens finas e esvoaçantes. Das transparências assomava a carne concupiscente que me embriagava a existência. O meu corpo era refém do seu corpo fremente e lascivo. Só a carne assumia a impossibilidade de continuar a idiossincrasia das palavras. A independência das atitudes de uma vida sem perplexidades. Nada do que interessava se reproduzia por si mesmo. O que regia o tempo não era o tempo. A proximidade dos corpos controlava a mecânica do devir impossibilitando a construção de identidades autónomas e perenes.

 

 


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publicado às 22:53

o sexo dos anjos

por vítor, em 25.01.13

 

(acabadinho mesmo agora, depois de uns dias de aflição, cá vai sem revisão nenhuma...)

 

O sexo dos anjos

 

O anjo só tinha uma asa e isso incomodava-o. Voava aos supetões, para baixo e para cima, como um pardal. A elegância própria do voo dos anjos era-lhe estranha. Por inimaginável que soe, tinha nascido assim. Nascer, para um anjo, já é uma aberração. Os anjos são, por natureza (sic), eternos e por isso inascentes e imorredoiros. Aquele anjo, este, não só tinha nascido, e por conseguinte faltava-lhe o infinito à posteriori, como o tinha feito sem uma asa. Se seria imortal só o devir nos traria a resposta. Acreditamos que sim: a vida libertá-lo-ia do padecimento final.

Quando o vento soprava irregular e violento, o problema do voo tornava-se deveras complicado. Chegava a parecer uma folha de árvore à deriva nos ares, rolando sobre si próprio,  parecendo, a todo o momento, que se iria despenhar. Dir-me-ão os leitores, sábios na complexa matéria da aerodinâmica do voo, que só com uma asa nem um pássaro voaria. Nem o mais leve dos fuinhas. Mas, meus amigos, a matéria que compõe os anjos não é a mesma que nos acompanha a realidade. Não sendo por isso suscetível a interpretações através das fórmulas e modelos físicos que interpretam o movimento e explicam as suas trajetórias. Ninguém alguma vez pôs em causa a ascensão da Nossa Senhora. E que eu saiba a virgem senhora não estava municiada de apêndices alados. Um sequer. Subiu e pronto. A propulsão da ascensão nunca foi referida como impossibilidade de viagem. Ascendeu e nada há a discutir. Aliás, um dogma não se discute. Este anjo voaria mesmo que não tivesse asas. Como a Nossa Senhora, Jesus Cristo ou o mais pragmático Maomé. Também não consta que o Espírito Santo, que tem as asa regulamentares – sempre duas, as use nas suas deslocações. Alguém já O viu batê-las? (para evitar confusões, alerta-se os leitores para que nos referimos ao bater de asas e não de outras batidelas que o espírito crítico sempre associa a “batê-las”) Sentiu a deslocação do ar do batimento da envergadura? Então por que duvidam das capacidades voadoras desteanjodeumaasasó? Aceito a desconfiança no abstrato. Mas se eu o afirmo é porque é verdade. Este nosso anjo voava! Aos supetões, mas voava. Ia a todo o lado e não recorria às pernas para grandes caminhadas. Ultrapassava todos os obstáculos terrenos recorrendo ao voo. Como qualquer ente alado. Percebido!?

Mas a sua tristeza consumia-lhe os dias. A risota dos outro anjos escarnecendo do seu voo, era insuportável. Nem pareciam anjos. Os anjos são anjos. A essência do bem e do bom iluminando o mundo. Os homens por quem estão encarregados de velar. O mundo visível e invisível; real e espiritual. (num aparte que me deixa envergonhado como escritor, quando escrevo a palavra espiritual lembro-me logo de bacalhau espiritual, mnham,mnham) É certo que o Diabo era um anjo que foi destituído por malvadez intrínseca e imortalidade ímpia. São as exceções que confirmam a regra., diria, para manter a reputação das criaturas que medeiam entre os homens e os deuses. Também a este nosso amigo anjo estava vedada a guarda de humanos. Que diria um pecador terreno ao facto de ter um anjodaguarda sem uma asa? E o mais grave, sei-o de fonte segura, é que os próprios arcanjos tapavam a cara com a asa à sua passagem. Riam para dentro envergonhados. O nosso anjo desesperava com a risota dos seus pares e superiores. Um dia tomou uma decisão drástica. Resolveu partir para longe. Se é que há longe ou distância para os anjos.

Abalou pela calada da noite, aproveitando uma reunião geral convocada pelo arcanjomor para tratar de assuntos respeitantes a uma nova conceção de competências para o desempenho da função de anjodaguarda - como estava liberto desta incumbências não tinha sido convocado -, caminhando pela estrada que levava ao mundo dos homens. A irregularidade do voo poderia chamar a atenção dos anjos de guarda. De guarda dos anjos, neste caso. Já lhe doíam os pés e as pernas quando parou para descansar da caminhada. Sentou-se numa pedra na margem do caminho. O crepúsculo cobria toda a extensão à sua volta. Massajou as pernas e os pés e recomeçou a caminhada. A falta de uso entaramela as estruturas, lentifica a ação. Estugou o passo rasgando a escuridão, renovado pelo descanso. A fronteira estaria, pelos seus cálculos, já descontada a pouca experiência em atividades pedestres, ao cair da noite. A decisão era de alto risco. Tinha-a ponderado longamente e a decisão tomada estava bem alicerçada na longa reflexão. Atravessar a fronteira para o mundo dos homens significava uma viagem sem regresso. Desde que o Paraíso tinha sido extinto, por incumprimento de contrato por parte dos moradores de tão aprazível condomínio, que anjos e homens nunca mais conviveram irmãmente. Pouca gente sabe, mas o Paraíso foi mesmo extinto. Expulsos foram Eva e Adão e toda a pandilha de anjos e arcanjos e seus semelhantes. Homens, para as rudes terras das sombras. Anjos para junto do senhorio de todos e de tudo. Ainda hoje não está esclarecido o papel dos anjos nas desventuras do primeiro casal aquando da precipitação no pecado original. Segundo fontes esptéricas geralmente bem informadas tudo não teria passado de uma questão de lutas fratricidas e fracionárias entre anjos por questões de poder. Políticas de anjos, diríamos hoje. Bem, deixemos estas complexas manigâncias, se bem que muito interessantes, de assuntos politico-teológicos. O que aqui nos interessa são as aventuras e desventuras de um anjo solitário e rejeitado que arriscou a sua vida para renascer. Que ousou recomeçar a partir do nada num mundo hostil e desconhecido.

A luz da madrugada inicial já inundava o vale que separava o mundo dos anjos do mundo dos homens. Ainda hesitou antes de transpor a fronteira. Era o tudo ou nada. E o nada aproximava-o de si próprio. O tudo do mundo anterior ao nada. Entrou. Nesse mundo onde não havia significado nem significante. Onde a razão de existir não existia. Nada tinha explicação e só a morte parecia impor alguma ordem na vida dos homens. Uma capicua existencial.

Entrou, decidido, sabendo que nada voltaria a ser o que tinha sido. Compôs o casaco grosso e comprido, cobrindo a mono asa, e avançou pela estrada silenciosa que penetrava o bosque vizinho. Depois de algumas horas de caminhada, sentiu-se, pela primeira vez, livre como nunca o fora. Ouviu um ruído de motor a aproximar-se. Um camião velho e desengonçado evoluía lentamente ao seu encontro. Estendeu o polegar direito apelando à boleia. Um marreco dos grandes, pensou o camionista enquanto se preparava para refrear a viatura. Para onde, perguntou parando junto ao caminhante. Para onde, repetiu o anjo. E para onde vai o senhor? Para a aldeia da mina. Não que lá more, vou carregar minério para levar à grande cidade. Pode ser, atalhou o anjo sem entusiasmo.

Até Ferrarias, assim se chamava a aldeia da mina, não trocaram uma palavra. Quando finalmente o distinto camião se deteve estremecendo convulsivamente, entraram na taberna que dominava a praça central e beberam duas aguardentes de figo. Finada a convivência, apertaram as mãos e despediram-se no mesmo mutismo da viagem.

O anjo tinha as coisas bem pensadas. A aventura tinha riscos eminentes e consideráveis. Mas, desde o longo casaco de lã aos passos a seguir depois de instalado, tudo estava registado num roteiro mental longamente congeminado. Escolher um nome, encontrar uma morada, arranjar uma ocupação. Forjar uma identidade, uma biografia credível. Depois, só depois, viria o passo mais arriscado e complexo. O extirpar da asa e, assim, um novo nascer. Ângelo. Era um nome vulgar e ao mesmo tempo mantinha-lhe um halo da sacralidade de antanho. Instalou-se numa velha pensão, num quarto esconso e barato com vista para o enorme monte de escombros junto à entrada da mina. A ganga dos dias. Com uma facilidade inesperada, conseguiu trabalho na mina. Seria mineiro. Escavando as entranhas da terra. As profundezas labirínticas da escuridão. Para um anjo, habituado às elevações etéreas, seria uma experiência dolorosa. Mas que o levaria ao lugar do homem mais rapidamente do que qualquer outra profissão. Grandes tormentos atiram-nos para o centro das realidades. O centro da Terra.

O trabalho era duro e sujo mas mostrou-se o ideal para os primeiros tempos de vida num mundo novo. O frio das profundas galerias permitia-lhe trabalhar sem retirar o estranho casaco. Os colegas de trevas eram pouco faladores e, ainda menos, curiosos. A dureza do trabalho não se ajustava a muita festa pós-laboral e, portanto, a dar nas vistas. Até para o varrimento visual que os anjos fizeram a toda a região nos dias seguintes à fuga, se bem que nada pudesse ser feito para o levar de volta, a não ser através da palavra engenhosa e sugestiva, as profundezas das velhas galerias eram impenetráveis. Estava seguro num ambiente instável e perigoso. Os proventos amealhados serviriam para atingir o último objetivo a concretizar no sentido da integração total. Andava, não diríamos feliz, sossegado. Os mineiros são pessoas reservadas e menos curiosas. Pouco se interessam pelas vidas dos que com eles esgravatam as profundezas. As entranhas da litosfera. Se a princípio o inchaço proeminente que empolava o velho casaco tinha estranhado a alguns – havia mesmo quem tivesse notado ondulações da relevante corcunda -, o que é facto é que não tinham passado de leves e efémeras especulações. Na escuridão labiríntica, na rudeza do trabalho, quem quererá lá saber de marrecas movediças. O espírito de todos preocupa-se, sobretudo, com o inimigo número um dos mineiros: o grisu assassino. E bastava que um dos rouxinóis deixasse de cantar para que todos ficassem de sobreaviso. O medo invadia as estreitas galerias e retesava os corpos. A pele seca colava aos ossos e o inferno era uma visão mais aterradora que a mais aterradora realidade da superfície. Talvez até por uma questão de proximidade. Portanto, ali não havia tempo a perder com frivolidades. Ali as especulações deambulavam, quase sempre, pelos mais importantes assuntos da filosofia ocidental: a vida e a morte.

 

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publicado às 17:01

um taxista feliz

por vítor, em 30.01.12

 

Talvez fossem seis da madrugada quando a mulher chegou a casa, velho apartamento na Venda Nova, subúrbio de duas cidades. O filho dormia o sono profundo da adolescência. Pousou a mala no sofá da sala, e foi beijá-lo com lágrimas a esmagar-se no chão cheirando a alfazema. Meteu-se debaixo do chuveiro e desapareceu na nuvem de vapor que consumia o cheiro a tabaco e homem da noite inabitada. Nem o espelho refletia a luz do corpo cansado, enquanto se envolvia num roupão que fora azul. Vestiu-se na madrugada final e fumou um cigarro na kitchenete dum sétimo andar qualquer. Fumou outro e esperou demoradamente o esplendor da luz do dia que se adivinhava. O despertador digital rompeu o silêncio dos afetos, atirando à triste rigidez das paredes debotadas a música dos dias sem sentido. Pôs-se a fazer torradas e aqueceu o leite. Retirou a lata de chocolate em pó da chaminé.
 - Aníbal, Aníbal, são horas. O odioso nome do pai. – Aníbal… vem…vem…
Sentaram-se nas cadeiras plásticas e, sem medo do amor, ele percebendo tudo. Ela sentindo a noite a ocultar-se na vida. Aos dezasseis anos já se compreende tudo, talvez como nunca mais alguém o possa entender. Sairam no Ford Fiesta para a procissão dos que não têm nada a perder e perdem tudo. Para, arranca, para, arranca e as palavras cumprem o tempo antes do princípio: o labirinto das vozes.
 - Aqui mãe, deixa-me aqui. A escola ficava ao fundo da rua em movimento. Parou o velho automóvel em segunda fila e um beijo ecoou nas memórias dolorosas duma casa com gritos. Viu-o descer a ladeira com a mochila às costas e, mais ao fundo, encontrar um grupo de amigos. Riram até os deixar de ver para lá dos portões da escola.
Meteu a primeira e, de olhos baços, dirigiu-se ao balcão do centro de emprego. Um homem que a tinha olhado demoradamente chamou um táxi e, para felicidade do condutor, viajou para longe.

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publicado às 22:09

transeuntes 2 edições CATIVA

por vítor, em 01.04.11

 

À venda, quase só, aqui no tasco.

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publicado às 14:00

o olhar desinteressado dos cúmplices

por vítor, em 24.05.10

 

Não é permitido o uso de qualquer sistema informático e/ou audiovisual. A placa de contraplacado com estes dizeres longos e claros era imperativa. Colocada à entrada da taberna, selecionava a clientela. Lá dentro, na penumbra difusa atrás do trava-moscas cantante, vultos dispersos ocupam algumas mesas silenciosas, ocultando os gestos no torpor do dia soalheiro. Uma tarjeta pequena  complementava a sua irmã exterior: reservado o direito de admissão.

Quando penetrei a penumbra acolhedora, ninguém voltou a cabeça, o olhar sequer, para a mudança musical operada pelos canudos pendentes da porta. A claridade esgueirava-se, atrevida, pelo salão, desocultando cones de poeira e fumo dançando no ar. Fumava-se no interior, emprestando à casa um odor a fim dos tempos.

Dirigi-me ao balcão e sentei-me num banco de pé alto, fincando os cotovelos no mármore gasto que separava o espaço público do privado: a vida às escâncaras da vida recolhida.

O seu pedido é uma ordem, disse alguém, a quem não vi os olhos, com voz mansa e rouca, por detrás da barreira, quase intransponível, trave estrutural do estabelecimento de bebidas e petiscos.

Lá fora a tarde deslizava, serena e quente, para os braços da noite acolhedora. As aves procuravam as sombras colhendo os últimos insectos antes do sono.

 

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publicado às 17:15

Chaminé Sorridente

por vítor, em 06.10.09

 

Faltava-lhe um dia de azar para chegar a casa e começou mesmo a ver-lhe já a chaminé sorridente. Na pressa de soltar os pés, tropeçou num ouriço cacheiro vagabundo. E como se a antipatia não morasse ali, encontrou um tipo de chapéu alto, com sapatos bonitos engraxados há cinco séculos.

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publicado às 19:17


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