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O crocodilo nadou até à margem do rio lamacento e para ali se deixou estar abandonado ao sol. A floresta ondulava na suave brisa da tarde.
Um chapinhar, intenso, próximo fê-lo, a custo, abrir um olho. O outro, esse, geria o sono. Ali bem perto, em contraluz, uma manada de dezenas de gnus chegava-se à água prateada. Pardacenta. Nervosamente, a medo, iam entrando no rio e saciavam a sede que a severa seca da savana impunha. Alguns, descontraindo, banhavam-se demoradamente. Gozando a frescura das águas dolentes. Cá fora, o ar convulso abatia-se por sobre a paisagem desfocada da estação seca. Os cornos emergiam das águas lembrando espadas erguidas acima do clamor da batalha. Exibindo o poder das pontas. O poder dos frágeis. O bluff dos fracos.
Um olho refletia as sombras tremelicantes do cenário. Rolava abarcando o mundo à sua volta. O centro do mundo era aquele olhar sem pressa. A espera é a mãe de toda a sabedoria. “Quem espera sempre alcança”.
O vento soprava na direção da manada e o crocodilo escaldava de desejo, deixando-se enterrar prazenteiramente na lama morna da margem. No lodo vital que tudo acomoda: a vida e a morte: o sonho e a realidade.
E como tudo o que se aproxima da perfeição, e corre de acordo com o desejado, nunca é o que deveria ser, eis que, vindo do lado do vento, se anuncia, com grande algaraviada, de música e gargalhadas, um jipe desse de turistas de safari, carregado de gente jovem e despreocupada, atravessando a vida de forma sulfurosa e incônscia, se aproxima do rio.
Os gnus rapidamente se libertam das águas lamacentas e partem em correria louca e desordenada, sob os disparos incessantes das câmaras dos telemóveis. Disparos inofensivos que registam e congelam os animais em cartões minúsculos. A alegria de uns. Sobrepõe-se ao medo dos outros. A tristeza não é o antónimo de alegria. Existe, no fundo das almas carentes, uma alegria intensa que se alimenta da sua própria tristeza.
- água, disse um.
- água, repetiram outros.
O condutor da viatura, na sombra de um velho imbondeiro, gozando o corpo dos banhistas seminus. No conforto da distância.
Um olho, que refletia a tarde tiritante do cenário, deslizou pela lama esponjosa até ao fundo do rio.
Na tarde tudo se anunciava. Nada do que teria sido, foi; e a vida seria sempre o que fora. Na impossibilidade de se viver outra vez.
Monte Gordo, 20/02/2020
Na periferia da noite, intensa e crua, os corsários regentes das inóspitas paisagens manobram os pardos combatentes da cidade.
Uma mulher velha dança nas ruas desertas, na solidão que desce dos candeeiros lacrimejantes, enquanto o desejo emerge das memórias recalcadas rompendo o passado, gangrenando a carne e estilhaçando os ossos fossilizados.
- Non, je ne regrette rien…
A mulher rodopia tão velha quanto a morte e tão jovem quanto os dias que restarão a quem luta pela irrepetível agonia dos amantes. É bela e não compreende o que lhe chega vindo dos dias sem regresso, de vidas aconchegadas nos corpos dos incautos passageiros da noite. Incautos porque desajustados à inclemente rotina dos dias. À inclemente tortura das horas. Na periferia da noite, intensa e crua, navegam argonautas pelos recônditos acidentes do negro mar, do oceano que encerras em ti e te impede de chegar mais longe.
A mulher velha sente o tempo como se de óleo das árvores se tratasse, como se a calçada lhe prendesse os pés e lhe entardecesse a gaguejante e sinuosa evolução através do cenário da noite fria. Ninguém lhe poderá valer: a aproximação à morte será sempre um caminho feito às arrecuas. O vento, que se apodera de tudo e tudo leva, soprar-lhe-á na face e os seus cabelos ensarilhados apontar-lhe-ão os campos das serpentes caladas que te separam do fim. Andas para trás caminhando para diante, arrastas-te no sentido da música libertadora que te conduz ao fim das palavras. Das palavras silenciosas e vãs, riscando o infinito como cicatriz escaldando a carne, ridicularizando o contrato social, dissolvendo as peias que te envolvem como se fosses uma aranha residente em labirinto concebido e tecido por quem não participa na batalha noctívaga do silêncio.
A mulher velha dança e dança e dança e dança, e tudo envelhece à sua volta. Dança e viaja à velocidade do tempo que passa, embalada no sibilar doce das mórbidas serpentes e das performances das borboletas assassinas. A mulher que dança, dança na nudez sideral do devir voltando, de quando em vez, à periferia da noite que a todos envolve e a todos seduz. Regressa e exibe, triunfal, a sua juventude resplandecente, retorno ao pecado original onde encontra aquele que não habita a cidade nem nunca encontrara os caminhos que levam ao nada – um homem devastado pelo desejo incontinente do medo.
Tudo envelhece num vórtice de penumbra na periferia da noite, no limiar do mito. É tarde e nada fará parar a correria desenfreada dos cavalos para a morte. Galopam sem freio rasgando a espessa poeira da noite, galopam sem deixar tatuados os duros cascos na fuligem do tempo. Tudo persegue, e prossegue, o vazio denso da manada. O oco que devagar ocupa o algo que some por entre as mãos postas em prece inútil. Aspirados pela dor que aproxima o abismo, avançamos ensandecidos pelo rasto de luz que a calçada oferta. Rejubilando na noite que se liberta dos entes parasitas que sustentam a cidade. Turbilhão que se afunda no estertor imundo da festa final. Da queda final.
As cobras rastejam, como é da sua natureza, na periferia da noite enquanto um homem que não habitou lugar algum baila, sinistro como faca mergulhando a carne latejante de sangue, com uma mulher jovem. Bailam na periferia do dia que se avizinha. Bailam no silêncio que arrepia.
- Non je ne regrette rien…
Monte Gordo, 27 de junho de 2018
O homem que nunca tinha sonhado perguntou:
- Que silêncio é esse que te gela os ossos.
A resposta, seca e corrosiva, que recebeu da rapariga sem imaginação, soou como uma praga de libelinhas.
- Quem não distingue a realidade da metáfora nunca chegará ao castelo do homem velho.
E assim se passaram muitos crepúsculos.
Um dia, igual a tantos outros, o homem que nunca sonhara sentiu-se feliz e compreendeu o significado daquele silêncio oco que esmagava como sombra cobrindo as pegadas dos pássaros, a consciência atulhada de sonhos dos outros.
Levantou-se e não conseguia caminhar. Esqueceu-se de como dar passos na direção da noite. Quando um pé abandonava o outro, um desequilíbrio inexplicável tomava conta do seu andar, impedindo-o de ir em frente.
Agora, inerte na luz, a rapariga dos silêncios sentirá que a vida é um sonho na periferia dos pesadelos da solidão.
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