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Malditos ciganos, não sabia o vento levá-los, guinchou a mulher do café ( presumo que a dona do estabelecimento, entendendo o café como edifício que alberga efemeramente transeuntes carentes), armada de balde e esfregona farfalhuda.
Mijou à parede, mesmo ao lado da sanita, nojento! vociferou impiedosamente, colocando uma cara-de-boca-de-cu.
O homem, provavelmente levado pela ventania, não se encontrava nas redondezas, enquanto a relinchante esfregadora procurava o unânime assentimento dos carentes, efémeros clientes da globalização. Eu, que tudo sei, poderia adiantar que o vi agora mesmo entrar no barbeiro do quarteirão seguinte. Mas que interesse tem isso para agora...
Depois do árduo trabalho de limpeza da retrete, a senhora empresária sentiu-se aliviada. A sua alteridade reforçara-se. O “nós” consolidara em ritual suspenso e ávido de movimentos de nucas.
Sentou-se com a barba de cem dias. Pediu café. E, para agradar aos fregueses, uma aguardente velha. Seguramente mais velha que a sua barba e mais nova que a sua vida. A aguardente é claro. O que nada nos adianta sobre a sua idade. A dos dois é claro. A não ser que ambos tinham mais do que cem dias. O que já antes era óbvio: ninguém, com menos de cem dias, pede uma aguardente e nenhuma aguardente velha que se preze tem menos de cem dias. Que confusão. Quem disse que o caminhante fazia o caminho?! Voltemos ao caminho.
Tragou primeiro o café com cheirinho e depois, devagar, em pequenos goles a bebida ardente. Socializando-se com gozo. O tempo parou por breves instantes. Só o vento se ouvia inquieto.
O antropólogo sentia a nova pele aconchegar-se ao "velho" corpo enquanto um prazer intelectual profundo o colocava nos interstícios do tecido social e lhe corrompia a identidade. O tempo, como atrás víramos, parara e era preciso dar-lhe vida. A festa não pode ser eterna. A sociedade é um fluir incessante que não pode parar. Parar, como tão bem Lapalisse frisou, é morrer. Ficar encantado à espera do sapo. Ou do príncipe?
Esticou o gozo até onde pôde e subitamente levantou-se e pagou. Antes de sair foi ainda à casa-de-banho. Depois, despedindo-se com um claro “até-logo”, entrou no vento e desapareceu rapidamente na direcção do quarteirão seguinte. Alguns fregueses pensaram a medo: que cigano simpático...
O café entrou no remanso turbilhão (rodando para a direita como sempre acontece no hemisfério norte) da normalidade. As conversas de catação voltaram a escorrer sem fio afrouxando as tensões. Só o vento se ouvia inquieto.
Mas o tempo, que não é previsível, logo voltou a entrar em turbilhão ( agora rodopiando para esquerda como sempre acontece, com os turbilhões catastróficos, no hemisfério pobre) gerando uma confusão momentânea na ignorância dos clientes.
A dona do café, que não era ingénua, tinha ido espreitar à casa-de-banho.
Malditos ciganos, uivou. Não sabia o vento levá-los, guinchou.
Alguns fregueses pensaram sem medo: os ciganos são sempre falsos.
Eu, utilizando as mesmas premissas, cheguei a outras conclusões: nunca se pode confiar num antropólogo enquanto trabalha. E, manuseando outras premissas, diria mesmo: muito menos quando não trabalha.
Seriam umas onze horas, duas horas passadas sobre os dramáticos acontecimentos ocorridos, quando o antropólogo voltou a entrar no dito estabelecimento comercial. Alguns fregueses, especialmente freguesas, seguiram o seu deambular ondulante, pelo café, até à mesa escolhida para pousar. Roupas primaveris e uma cara escanhoada pareciam fazê-lo mais novo.
Mais novo que certas aguardentes velhas.
Sentou-se e pediu um café e um queque com passas. Mordiscou o queque enquanto ia bebendo o líquido quente, devagar. Adorava a mistura dos dois. Molhou mesmo o bolo no café.
O ambiente não se alterou significativamente com a entrada do estranho. Um caixeiro-viajante, pensou uma mulher mais nova, mergulhando em viagens para longe. O vento amainara lá fora.
O cheiro a mijo ainda não se tinha dissipado completamente apesar da esfregadela profissional. A dona do café estava feliz. A vida corria sem sobressaltos e os momentos eram dentes em roldanas de velho relógio com corda para uma semana.
Passado um bom bocado, e depois de umas miradas com interesse à telenovela da hora do almoço que corria na televisão, o antropólogo levantou-se, dirigiu-se ao balcão, pagou, foi à casa-de-banho e saiu despedindo-se:” até sempre”. Os fregueses responderam-lhe cordialmente e retomaram a postura de efémeros carentes sem lugar nem futuro.
O cheiro a mijo tinha aumentado consideravelmente.
Malditos ciganos.
A dona do café atribuiu-o ao vento que amainara lá fora.
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