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São cinco horas da manhã na cidade

por vítor, em 16.06.08

 


 

 

 São cinco horas da manhã na cidade. O vento parou um pouco. Entre as sombras gigantes das árvores, passeio confusamente anos acumulados de solidão.

  É triste a impossibilidade de regressar. Regressar a um lugar onde as coisas se ligavam logicamente, formando um corpo coeso e inteligível.

  As ruas arrefecem do longo dia de Verão, é , no entanto, discutível se eu o sinto, porque não há pássaros acordados na noite.

 A cidade define-se por ter bares abertos às cinco da manhã. Não os encontro e talvez não esteja nela. Ou então, maldosamente, fecharam para me impossibilitar o contacto com os outros.

 Sinto-me observado quando dobro as esquinas sujas da minha mente. É uma sensação agradável, mas  portadora de angústia. Angústia porque sei que nada me pode observar como sou e, muito menos, às cinco da manhã de uma madrugada sem Lua. Há um universo de coisas desconexas entre mim e o que pretendo dizer. Um não acabar de estímulos irreversíveis que nunca vou voltar a lembrar: aliás a memória é um instrumento ao serviço do passado e eu sou um deserto sem vegetação primitiva.

  No cais alguns barcos descansam, sentem arrepios  só de pensar nos anos que o mar lhes vai dar de novo.

 Algumas carcaças, como eu,  sonham com a morte, enquanto se tentam roçar nos ventos húmidos da maresia. Descrever a beleza  é uma tarefa vã. Só os loucos a tentam. É voltar atrás para desnudar o futuro. A transgressão dos tabus é um enorme fascínio, a que sempre se resiste enquanto somos homens livres. Os tabus algemam a vontade à sua violação.

  Começa a levantar-se a luz da madrugada - as cinco horas já vão - e as coisas começam a tornar-se feias. Até talvez os pássaros não gostem da madrugada, e o seu cantar seja o repudio pelo renascer de uma morte , que é o sono.

  A angústia apodera-se das minhas forças já frágeis de ousar desafiar a natureza. Os barcos desapareceram para o mar imenso esperando naufragar, a qualquer vaga, nas escuras profundezas do oceano.

   Olho em volta e as sombras transformam-se em luzes coloridas, horríveis a meus olhos. Até as mulheres, anjos da noite, se tornam reprováveis formas fluorescentes.

  Começa a nascer o dia - de parto normal - e tenho a certeza que não vou encontrar ninguém: a esta hora já os autocarros deviam vaguear pela cidade arrancando as pessoas ao sono. Belisco-me. Não sinto dor e por isso estou seguro que estou acordado. A dor é própria  dos eternos sonhadores, convertidos em pus, nas suas camas de luxo.

 Viro a mais uma esquina virtual, de onde posso espreitar o despontar dos comedores de ilusões. Ali, onde o tempo age de improviso e confessa ter um filho que não conhece , onde embarcam os marinheiros aflitos, não vi ninguém. Então, qual ribombar de trovões, vindos de não sei de onde, surgem toneladas de carrascos enlatados, atirados do alto da pirâmide.

  Respondi-lhes com a coragem possível nos dias de hoje:

-         Desculpem mas não podem entrar na minha casa. Na minha casa só entra gente de bem.

Eu sei que às vezes penso que os outros estão a topar as minhas fraquezas, mas isso, sei-o bem, é uma fraqueza da minha parte.

 

 

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publicado às 15:17


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