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Os dias prosseguem outros dias

por vítor, em 15.03.23

 



No café, quis pedir um rissol, mas como não me lembrava do nome do raio do frito, acabei por pedir apenas uma cerveja. Não era que não pudesse levantar-me e apontar o rissol, que raio de nome para uma coisa que se parece é com uma lua, mas não me apeteceu. O empregado deveria achar, toda a gente acha sempre alguma coisa, e raramente acerta no que acha, as ações têm sempre tantas interpretações que nem o ator sabe, muitas vezes, o que o levou a fazer aquilo que acabou de fazer , que estava com alzheimer. Quem faz, fez, e, ele próprio, acha que o fez por alguma razão qualquer que se se for bem a ver não tinha nenhuma razão para fazer.

Quando deixei o café, deitei os olhos a uma banca de rua que me pareceu de livros. Livros e ferramentas para a agricultura chamam-me sempre a atenção. Mal tinha posto os referidos olhos no tampo da mesa, um sujeito, o dono do estendal, perguntou-me se queria assinar um requerimento seu para ser candidato à presidência da República. Disse-lhe logo que sim. Lá estão as tais ações irracionais. Curiosamente, o homem não pertencia a partido nenhum. Lá assinei os papéis todos, e ainda tive que ir à carteira, para preencher a data de validade do cartão de cidadão. Já ia ao fundo da rua, quando, de repente, voltei para trás a perguntar ao candidato ao mais alto cargo da nação como se chamava. O mais provável é o homem não ganhar as eleições. Se calhar nem consegue as assinaturas necessárias para tal desiderato. Mas nunca se sabe. O investimento não foi muito grande e os ganhos poderiam ser consideráveis. Afinal, a razão ainda tem a sua importância.

Ainda não me tinha bem libertado da condição de homem cívico, cidadão interventivo na vida democrática do seu país, e já estava metido noutra. Quando passava, fugazmente, e por mero acaso, em frente ao Hospital Central, um homem com mau aspeto, numa cadeira de rodas, chamou-me. Eras, logo, de cerneira, tratamento por tu, capaz de me empurrar até ao quiosque da rotunda para comprar tabaco. Ainda não tivera tempo para responder, e já íamos a caminho da rotunda, que ficava ao fundo da rua, a uns 500 metros do hospital. Conduzir uma cadeira de rodas na cidade não é pera doce. Obstáculos de toda a ordem vão surgindo, e, às vezes, de onde menos se espera. Passeios altos sem rampa, carros e trotinetas em cima dos passeios, até os transeuntes parecem querer dificultar a progressão de quem se desloca numa cadeira de rodas. Talvez pelo aspeto do passageiro. E, que a verdade tem que ser dita, do condutor. Os dois com uma barba bíblica. Embora este último, no caso, eu, relativamente bem vestido e bem nutrido, o primeiro, o prominente transportado, mal vestido, e, manifestamente, mal alimentado. As rugas da parte da face visível eram canyons profundos desaparecendo na farta pilosidade. Muitas pessoas que nos encontravam saudavam o indigente. À distância. À volta, quando o empurrava até à porta do hospital, onde estava internado, e donde se tinha escapado, sem autorização, para ir comprar tabaco, contou-me que era muito conhecido em S. Brás e Faro. Por bandidagem e ladroagem. Já tinha trocado balas com a polícia, mostrou-me as cicatrizes na barriga das que lhe tinham acertado, e passado uns anos na cadeia. Quando o deixei no local pretendido, ainda me pediu cinco euros. Menti-lhe, respondendo que não tinha. Não levou a mal. Despedimo-nos combinando encontrarmo-nos em S. Brás num dia qualquer.

Como já era tarde regressei a casa de táxi, gastando os dez euros que tinha na carteira. Se tivesse sido generoso, teria regressado a pé. As mentiras, às vezes, dão um jeito do caraças.



11.1.2023

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publicado às 15:49

à mesa do café (me escondo)

por vítor, em 16.07.09

 

Adão Contreiras

À mesa do café (anos 70)
Gravura em metal prova de ensaio água forte
35x25

 

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publicado às 19:04

Um Antropólogo Competente

por vítor, em 28.04.08

  Um homem, que pelo que a senhora do café disse, cigano, mijou na casa –de- banho. E onde está o mal pergunta-se?

   Malditos ciganos, não sabia o vento levá-los, guinchou a mulher do café  ( presumo que a dona do estabelecimento, entendendo o café como edifício que alberga efemeramente transeuntes carentes), armada de balde e esfregona farfalhuda.

   Mijou à parede, mesmo ao lado da sanita, nojento! vociferou impiedosamente, colocando uma cara-de-boca-de-cu.

   O homem, provavelmente levado pela ventania, não se encontrava nas redondezas, enquanto a relinchante esfregadora procurava o unânime assentimento dos carentes, efémeros clientes da globalização. Eu, que tudo sei, poderia adiantar que o vi agora mesmo entrar no barbeiro do quarteirão seguinte. Mas que interesse tem isso para agora...

   Depois do árduo trabalho de limpeza da retrete, a senhora empresária sentiu-se aliviada. A sua alteridade reforçara-se. O “nós” consolidara em ritual suspenso e ávido de movimentos de nucas.

   O dia começava a raiar quando o antropólogo entrou no café. Trazia, como sempre que trabalhava no ofício, a pele de outro. Confundia-se com o objecto de estudo. Mimetizava-se de “homo falsus”, para ser levado a sério.

   Sentou-se com a barba de cem dias. Pediu café. E, para agradar aos fregueses, uma aguardente velha. Seguramente mais velha que a sua barba e mais nova que a sua vida. A aguardente é claro. O que nada nos adianta sobre a sua idade. A dos dois é claro. A não ser que ambos tinham mais do que cem dias. O que já antes era óbvio: ninguém, com menos de cem dias, pede uma aguardente e nenhuma aguardente velha que se preze tem menos de cem dias. Que confusão. Quem disse que o caminhante fazia o caminho?! Voltemos ao caminho.

   Tragou primeiro o café com cheirinho e depois, devagar, em pequenos goles a bebida ardente. Socializando-se com gozo. O tempo parou por breves instantes. Só o vento se ouvia inquieto.

   O antropólogo sentia a nova pele aconchegar-se ao "velho" corpo enquanto um prazer intelectual profundo o colocava nos interstícios do tecido social e lhe corrompia a identidade. O tempo, como atrás víramos, parara e era preciso dar-lhe vida. A festa não pode ser eterna. A sociedade é um fluir incessante que não pode parar. Parar, como tão bem Lapalisse frisou, é morrer. Ficar encantado à espera do sapo. Ou do príncipe?

   Esticou o gozo até onde pôde e subitamente levantou-se e pagou. Antes de sair foi ainda à casa-de-banho. Depois, despedindo-se com um claro “até-logo”, entrou no vento e desapareceu rapidamente na direcção do quarteirão seguinte. Alguns fregueses pensaram a medo: que cigano simpático...

  O café entrou no remanso turbilhão (rodando para a direita como sempre acontece no hemisfério norte) da normalidade. As conversas de catação voltaram a escorrer sem fio afrouxando as tensões. Só o vento se ouvia inquieto.

   Mas o tempo, que não é previsível, logo voltou a entrar em turbilhão        ( agora rodopiando para esquerda como sempre acontece, com os turbilhões catastróficos, no hemisfério pobre) gerando uma confusão momentânea na ignorância dos clientes.

    A dona do café, que não era ingénua, tinha ido espreitar à casa-de-banho.

    Malditos ciganos, uivou. Não sabia o vento levá-los, guinchou.

   Alguns fregueses pensaram sem medo: os ciganos são sempre falsos.

   Eu, utilizando as mesmas premissas, cheguei a outras conclusões: nunca se pode confiar num antropólogo enquanto trabalha. E, manuseando outras premissas, diria mesmo: muito menos quando não trabalha.

 

   Seriam umas onze horas, duas horas passadas sobre os dramáticos acontecimentos ocorridos, quando o antropólogo voltou a entrar no dito estabelecimento comercial. Alguns fregueses, especialmente freguesas, seguiram o seu deambular ondulante, pelo café, até à mesa escolhida para pousar. Roupas primaveris e uma cara escanhoada pareciam fazê-lo mais novo. 

Mais novo que certas aguardentes velhas.

   Sentou-se e pediu um café e um queque com passas. Mordiscou o queque enquanto ia bebendo o líquido quente, devagar. Adorava a mistura dos dois. Molhou mesmo o bolo no café.

   O ambiente não se alterou significativamente com a entrada do estranho. Um caixeiro-viajante, pensou uma mulher mais nova, mergulhando em viagens para longe. O vento amainara lá fora.

  O cheiro a mijo ainda não se tinha dissipado completamente apesar da esfregadela profissional. A dona do café estava feliz. A vida corria sem sobressaltos e os momentos eram dentes em roldanas de velho relógio com corda para uma semana.

   Passado um bom bocado, e depois de umas miradas com interesse à telenovela da hora do almoço que corria na televisão, o antropólogo levantou-se, dirigiu-se ao balcão, pagou, foi à casa-de-banho e saiu despedindo-se:” até sempre”. Os fregueses responderam-lhe cordialmente e retomaram a postura de efémeros carentes sem lugar nem futuro.

      O cheiro a mijo tinha aumentado consideravelmente.

   Malditos ciganos.

   A dona do café atribuiu-o ao vento que amainara lá fora.

    

 

 

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publicado às 21:43


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