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Ossos

por vítor, em 20.01.19

 Atiro os meus ossos aos cães E fico-me prisioneiro da carne, bamboleando Na brisa que sopra da noite enquanto ouço O triturar dos ossos nos maxilares dos animais Vadios, eco sonâmbulo nas vielas estreitas Onde os grafitos assomam da cal solta Das paredes. Inicio a travessia das trevas À procura de luz que me estruture a existência, Me ampare a memória fragilizada. Os cães rosnam Quando passa oscilante a carne dos seus ossos. A carne não exige caninos que trinchem o suporte Inútil da ardente voluptuosidade. O tempo cozerá Uma nova estrutura, uma nova solidez para o ser Esponjoso que se atravessa na ilusão da persistente Procura. Talvez os cães preferissem a carne desossada Que me transporta, a carne fedendo a desejo. Rasgar A carne parece-me, que não conheço o prazer De devorar a vida, mais apetecível do que esmagar ossos para chegar ao tutano oculto e morno. Há gente que só consome carne soldada no esqueleto Dos outros. Que se alimenta dos destroços atirados À rua, destroços que nunca conheceram O todo a que pertenceram. O frágil repugna Os que se alimentam dos desperdícios lancinantes Dos desalinhados. Nunca os veremos a apodrecer nos Espelhos que devolvem a sua imagem aos frios cristais de prata, as personagens que nunca fomos e que apascentam as memórias das criaturas que gemem nos subúrbios da paixão. Abandonados, nunca o devir lhes servirá de desculpa para justificar os desvios que empreendemos quando a solidão fulmina. Há até quem reconheça no bater das asas dos pássaros relâmpagos de dor, excrescências vazias corroendo os ossos devolutos. Os cães vadios que vagabundeiam nas vielas apertadas da cidade ladram aos exilados que se apresentam como heróis assustados, às endorfinas que exalam da pele sacralizada. Na ossatura fossilizada, os caninos rasgam sulcos antigos contaminando os que, como eu, perderam a interioridade palpável, o molde dos sentimentos instrumentais. Resta, restará sempre, o que a vaidade Semeia no olhar dos crentes. Vrsa 29-1-15

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publicado às 22:31

Palermices à beira duma pneumonia...

por vítor, em 04.04.16

 

Poema "Ossos", nunca publicado em livro, lido, barbaramente, pelo autor, Vítor Gil Cardeira (aproveitando a voz de gripe).

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publicado às 23:42

até ao fim das marés

por vítor, em 21.02.10

           

 

            Não me digas que as galinhas gostam de queijo?, perguntei incrédulo, mergulhado na areia da praia postiça.

            Sim, respondeste, com cara de poucos amigos. E têm preferência por queijo da serra.

            Seriam quatro horas da tarde de um dia qualquer e o vento soprava de penente, sem dó. A areia fazia-me cócegas na parte inferior dos tornozelos. Na praia deserta começava a fazer sentir-se um odor a precipício e prossegui o questionário inquisidor: e a que sabem as galinhas comedoras de queijo?

            A galinha, naturalmente, respondeu a minha amiga, do outro lado da maré mortiça.

            Tinha lógica. Galinha alimentada a milho não sabia a milho, pois não? Mas queijo??!!

            Bom. Esqueçamos as galinhas que outros problemas amoro-filosóficos mais prementes se alevantam. Mas queijo?...

            Ah, e aquela dos ouriços que não gostam de cães?, perguntei maldosamente.

            E com toda a razão, opinou espontaneamente a minha bela e colaborante arqueóloga de sonhos escalavrados. Se os cães gostam de ouriços – gastronomicamente falando, claro – é de todo natural que estes não os apreciem e …

            Interrompi a sua rápida e incisiva (diria mesmo canina) argumentação, com não menos veloz e flamejante raciocínio. Mas eu gosto de ti e, até às cinco da tarde como prometido, tu gostas de mim.

            Não confundas gastronomia e sobrevivência, com amor e ódio. Replicou sem pestanejar. Eu sobrevivo sem ti, sem amor e sem ódio, até ao fim das marés. Sem religião não existem escravos. O amor e o ódio cativam as consciências obtusas da servidão.

             Meu Deus!

            A abrasão arenosa envolvia-me a pele peluda dos milénios. Nos joanetes assexuados convergiam exaustos os fantasmas da perplexidade funesta. Da atmosfera cálida. Reacção dos poros epidérmicos à invasão sedimentar. Na imaginação imensa da maresia, atropelavam-se cães, galinhas, ouriços e sexos. Sexos brandos e apocalípticos, soçobrando de espanto.

            O ódio aproximava-se devagar, como era conveniente. Conveniente e imperioso. Na vastidão absoluta dos sentimentos inertes uma gaivota de papelão guinchou na tarde. Da anti-praia sons da aproximação do Levante invernoso. As areias da vida movediça envolviam-me calorosamente e sem mágoa visível. Dizível, pelo menos. O fim da tarde fazia o seu caminho, inexorável.

            A minha tia alimentou os felizes galináceos a queijo e nunca se queixou da cor da canja. Mesmo a crosta, que envolvia o caldo milagroso, lhe era meio indiferente. Aproveitava-a para barrar o pão.

            O atrito da caneta do tempo soava sulcando o papel da vida. Arrepiava o silencioso tombar do dia. A solidão, brutal e sanguínea, assomou às cinco da tarde de um dia qualquer. Até ao fim das marés.

 
 
Texto para o Luíz Pacheco. Um escritor como outro qualquer.

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publicado às 22:51


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