Esta tua bisavó, que ali vivia, tinha três filhas: lindas e cobiçadas.
Eram três as irmãs: a Belinda, a mais velha; a Amélia,
A tua bisavó; e a Josefina. A Josefina tinha
Menos dezoitos anos do que a Amélia, que tinha
menos um que a Belinda. A tua bisavó Amélia era a mãe da tua avó Amélia que era
Mãe do teu pai. A tua avó Amélia foi a pessoa
Que o teu pai mais amou: um amor que tudo superava (e eu amuado).
Foi nesta casa que eu conheci o teu pai para o passar a amar
Até ao final dos tempos. A tua bisavó Amélia era minha prima.
Prima segunda. Primeira, era do meu pai. O teu avô João de Deus.
Que no teu assento de nascimento, na conservatória, está como João de Jesus.
(tenho que lá ir mudar o erro – diz-me a minha mãe desde
que a conheço e eu sei, sempre soube, nunca irá)
Quer isto dizer, e tu sabe-lo bem, que o teu pai era meu primo:
Meu primo segundo colateral. A tua bisavó Amélia que
Era minha prima segunda, via o meu pai, que era seu primo, como mais um irmão.
Ou seja, os meus bisavós paternos eram os mesmos que os bisavós
Maternos do teu pai. A esta casa vim, com a minha prima Célia, visitar a nossa prima
A mando do meu pai que era muito dado ao culto da família.
Viemos de bicicleta desde Santa Rita até às Cabanas. E o teu pai estava de visita à avó.
Afogueada com a longa viagem a pedalar, e com a visão de tal criatura,
perdi, definitivamente, o fôlego. Para sempre!
Depois, ele escreveu-me uma carta e…foi o que se sabe. Tenho a carta guardada
Para ta deixar. Não sei se a tinta do tempo ta deixará entender.
A tua bisavó Amélia, que já era velha por essa altura, era muito engraçada e bondosa.
Estava sempre a queixar-se da perna. Não sei se era só de uma delas,
das duas ou de uma e de outra, alternadamente. E nós, os jovens ríamo-nos a bom rir.
Ela… ria-se também: “Ai a minha perna, ai a minha perna que não me deixa fazer nada!”
As três irmãs eram muito diferentes: a Belinda muito séria e complicada, a Amélia alegre
E bondosa, a Josefina, que tinha menos dezoito aos do que as outras,
mentirosa e infantil. Vá lá que casou com o Ti Evaristo
Que era um bom homem. Foi a irmã Amélia que a amparou nos muitos momentos de aflição.
Dava-lhe dinheiro para ir à praça comprar carne para as duas ao talho do Sr. Feijão,
um bom amigo dos teus avós, e ela ficava a dever e com o dinheiro. Um dia, o Sr. Feijão,
envergonhado, lá contou à tua avó o que se passava. Acho que foi nesse dia que houve a
grande cheia em Tavira. A de 1968. Nesse dia, talvez por causa da arrelia com a carne, a tua
avó caiu na casa do teu tio Joaquim e tiveram que ir os bombeiros de barco buscá-la. O teu tio
morava mesmo nas margens do Rio Séqua. Ninguém sabia onde começava e acabava o rio.
Passavam garrafas de gás. Porcos, galinhas, laranjas e, há quem diga, e jure a pés
Juntos, que vira passar, a esbracejar, homens e mulheres. Até, asseguram, algumas vacas
tristes com a sua sorte. As coisas até correram bem e, chegados a margem segura, lá foi a tua
avó até ao hospital. Era só um braço partido e, depois de bem engessada pelo Dr. Jorge
Correia, ainda apanhou camioneta da carreira para Vila Real e visitou, antes de eu a levar no
Velho Anglia IA-32-12 à fazenda da Cativa, o filho Fernando, como o fazia todas as quintas.
Esses eram dias felizes para o teu irmão e para ti: nunca faltavam
as tabletes Regina compradas na venda do Velho João. O teu pai era o seu menino querido.
Foi-o sempre até ao esquecimento. E, embora o teu nome tivesse sido o último que a sua boca
Pronunciou, foi o seu Fernando o amor da sua vida. O menino teve uma trágica paralisia
Infantil e, a partir dali, viveram um em função do outro. Um para o outro! (só por isso eu
Compreendia essa preferência pela mãe. Compreendia, mas não aceitava. Mesmo depois de
Me ter arrepiado e ter sofrido com o seu choro descontrolado na sua morte…)
A última vez que a tua avó Adelina me bateu, e foram bofetadas cruéis, foi por causa de uma
Tia minha. Dizia ela que o meu namorado não era o melhor para mim. Que nunca me
daria segurança e sustento com o problema da perna. Nem que o tenha que transportar às
costas o resto da minha vida, respondi-lhe eu de forma agreste. A tua avó esbofeteou-me por
causa desta raiva libertada. Foi a última vez. E a primeira. Mas deixou-me casar com o teu pai.
O meu pai morreu dentro da nora que regava a horta. Quando foi pôr o motor
A trabalhar no fundo da garganta vertical. Na plataforma de cimento sobre as águas.
Tinha-o feito centenas de vezes. Neste dia, os fumos subiram mais depressa do que ele pela
escada de corda de aço. Pelo túnel de luz e escuridão.
Caiu inanimado sobre a plataforma de cimento. Se tivesse caído na água talvez tivesse
acordado e sobrevivido. Quando telefonei para a escola para te comunicar e mandar vir para
casa, foi o senhor Coito, o chefe dos contínuos, que me atendeu o telefone. Estavas a dar saltos mortais, vê bem a
ironia, na caixa de areia, por debaixo do depósito da água. No velório choraste
convulsivamente quando te mandei beijar o teu avô para o deixar ir. As velhas consoladas com
o menino sofredor. Disseste-me, mais tarde, que só tinhas chorado porque te obriguei a beijar
um cadáver. E que ainda hoje sentes o frio da sua careca nos lábios.
Nunca conheci o meu pai com cabelo. Como sabes, tive três irmãos que morreram
precocemente. A minha família foi destroçada pela morte:
um maninho tinha apenas uma semana e eu fui avisar o meu pai, o seu pai, o teu avô, o primo
do teu pai, a quem mudaram o apelido no papel, atravessando
Barrocais e arrifes até onde o mestre Deus construía uma casa. Voltámos a casa tão tristes
Como se fôssemos fantasmas no paraíso da loucura… por barrocais e arrifes. Depois, o meu
Irmão mais velho deixou-nos quando veio da tropa e a minha irmã foi-se para lá do tudo e do
Nada e deixou-nos a pequenita, que se fez grande e mulher, a tua prima Antonieta. Foi a tua
avó Adelina e eu que a criámos. A menina tinha uma sombrinha, que a acompanhava para
todo o lado e que só ela via. Existia só para ela. As pessoas abanavam a cabeça com tristeza (eu, que
cheguei muito mais tarde, adorava a sombrinha e até a usava, às escondidas, quando chovia)
Nunca pensei que chegaria a esta idade. Sempre imaginei que também soçobraria à vida cedo,
sem te vir a conhecer. Talvez por isso, terei lutado tanto pela família. Quando casei, não tinha
um tostão. Tirando alguns presentes práticos, a minha tia, a tia que nunca gostou de mim,
e por isso não a nomeio, deu-me um garnisé e uma jarra – e o garnisé, nessa mesma noite, a
noite de núpcias, desvairado com a mudança, voou contra o pechisbeque e atirou-o ao chão.
Em cacos. Fui pedir dois escudos à minha mãe. Que não tinha. Em cacos! Prometi nunca mais pedir dinheiro a ninguém. E cumpri. Até hoje.