Sempre senti o apelo da viagem,
E, no entanto, apesar das voltas que fui dando, umas sensatas, outras ao arrepio de quaisquer lógicas ou entendimentos, nunca saí deste lugar morno e acolhedor. Lugar centrado em mim e que de mim faz mundo. Lugar peia, lugar gravítico, para toda a vida. Sim, a verdade, se é que podemos falar assim, e sabendo da sua viscosidade, e das suas múltiplas máscaras com que nos tenta e compra, é que todos seremos esquecidos. Mesmo os que, bem-aventurados, deixaram “obras valerosas”. Bem-aventurados como são todos os que vivem para a comunidade e não para sugar o tutano quente dos outros. Mesmo que esses outros não passem de carcaças ambulantes de nós mesmos. Esqueletos bambos dançando na música das tempestades. O que restará, se alguma coisa restar, será uma caricatura do que fomos, uma imagem tão baça, tão disforme, tão distante, que muitas vezes nós próprios não nos reconheceríamos nela. Porque nem aquilo que fazemos das coisas é obra nossa. Tornamo-nos nos outros, num todo homogéneo, uma amálgama de entes estranhos entrelaçados pela sua ausência, manipulados por gerações com formas de interpretar diversas daquelas que nos enformaram e levaram a ter comportamentos e ideias, a criar, que deixámos como rasto de vida. Pegadas que o tempo apagou: restam apenas retratos a sépia crónica. O futuro não será mais do de um passado requentado e desconhecido. Ninguém nos reconheceria se voltássemos um dia ao convívio dos que nos sucedem. A criatura é sempre mais duradora que o criador. O próprio criador se transforma em criatura quando olhado de fora enquanto produtor de inovação. As criaturas universais tornam-se obras de construção universal. Obras coletivas que anulam o artista. Ou melhor, integram-no naquilo que o fez capaz de criar a coisa cultural: os arquétipos profundos criadores da humanidade. Aquando da gestação, a criatura está geneticamente condenada à condução guiada do escopo do criador. Guiada pelos genes e pelos intrometidos, arquétipos. Uns, inscritos no ADN, que individualizam, outros, tatuados na psique, que universalizam e destroem a concepção de autoria. Só os loucos podem escapar a este determinismo genético e social. Só os loucos poderão caminhar pelas bordas do precipício, exibindo o riso da eternidade, escarnecendo dos prisioneiros que navegam nas águas turvas do esquecimento.
Não, não há fuga à gadanha final. A morte sempre vence.
Vítor Gil Cardeira
in “Poética do Tumulto”, edição Traça - Editora e Ermo"