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António que tens a minha idade

por vítor, em 14.08.10

 

Ontem, enquanto lia o jornal na esplanada do Casal, em Vila Nova de Famalicão, os olhos brilharam-me, subitamente, na sombra centenária dos plátanos. Uma fotografia de um querido amigo encimava a página 13 do jornal (a página 13 de uma sexta feira 13 - coincidências, meras coincidências), o sorriso foi-se abrindo, até quase à gargalhada suave: "O escritor, dramaturgo e antropólogo António Pocinho, autor de Elucidário Sexual, Pés frios dentro da Cabeça -  (a gargalhada enrola nos lábios perplexos) - ou A Ilustre Máquina de Ramires, - ( a gargalhada rebenta na face como pára-quedista que estoura no chão com o pára- quedas por abrir, e acodem-me gritos que  sacodem a memória e me arrastam num sofrimento indizível até aos confins da dor) - morreu quarta-feira, em Tomar, aos 52 anos..."

 

Na terra dos antepassados, que nos pré-existem e que nos sucederão, onde o principio e o fim, o nascimento e a morte, fecham o ciclo da cultura, apresentaremos o brutal teatro que nos envolveu a vida.

 

http://www.otemplario.pt/ultimahora/noticia/?id=4244

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publicado às 15:13

Portugal é um país pequeno. Pequeno em área física. Hoje, e cada vez mais, Portugal confina-se à cidade de Lisboa. O resto do país só aparece pelo sórdido: uma ponte que cai em Entre-os-Rios, uma criança que desaparece no Algarve, um apito dourado no Porto, uma casa de regabofe pedófilo em Elvas.

Lisboa é uma cidade pequena. Todos se conhecem. Na cidade existem duas castas bem distintas. As elites, vivendo nos mesmos espaços e movendo-se nas mesmas "instalações" e os, digamos, "deserdados da sorte", vivendo nos arrabaldes da "não inscrição" e entorpecidos pelas novelas e concursos de televisão. Cada vez mais separados no espaço e no ser. Os condomínios fechados, para as elites culturais e políticas e os bairros difíceis (na verdade também fechados) para  o lúmpen indiviso da multidão anónima.

 

Como ia dizendo, Lisboa é uma cidade pequena onde todos se conhecem. Todos os conhecidos como é óbvio porque os que não aparecem na tv não só não existem como ninguém os conhece. Sendo claro que hoje a existência não é, ela só, pressuposto de conhecimento. Ou seja, pode-se ser conhecido, e bem conhecido, sem nunca ter tido uma existência real. Basta pensar no Harry Potter ou no Sr(?) Klark Kent.

Como uma escola americana de Antropologia de meados do século XX, estudando pequenas comunidades rurais da Andaluzia, mostrou, onde os vizinhos todos pertencem a um “nós” coeso e próximo em interesses e objectivos, existe um patamar de realização para o “eu” que estes cientistas sociais entenderam apelidar de “limited good”. Se ultrapassas este tecto usaste certamente ferramentas ilícitas, do ponto de vista moral e real. Exemplifiquemos: se tens muito sucesso com mulheres, usaste filtros, pós, magias, chantagens misteriosas não correctos e inaceitáveis  contrariando o livre arbítrio das conquistadas; se tens sucesso com o dinheiro, é porque traficas drogas e outros produtos afins; se falas muito e bem, só nada podes dizer. Os bens ao dispor da comunidade são finitos e o seu acesso nivelado por baixo. Se o nivelamento fosse por cima corria-se o risco da sua escassez.

Ora em Lisboa o “limited good” é imposto de forma implacável. Os ódios são mortais entre  os portentosos contendores na escalada social. Utilizam-se as mais inimagináveis, criativas e mortíferas armas. Nos estreitos palcos da contenda os truques sujos são aplicados sem remorsos e de forma maquiavélica. Quando ouvimos, o que é frequente nos nossos dias, falar de cabalas, conjuras e ajustes de conta, não estamos a usar da metáfora como meio de expressão. Estamos a ouvir os relatos de uma luta intestina incessante e, muitas vezes, com um fim irreversível e dramático. A lama. A mais baixa das mais baixas castas. A lama moral de onde mais não se pode sair até ao fim dos tempos.

 

E, para não me alongar mais do que já estiquei neste modesto post, assim vai este lindo Portugal. Perdão esta “bem cheirosa” cidade de Lisboa.


(post repetido)

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publicado às 14:49

Um Antropólogo Competente

por vítor, em 28.04.08

  Um homem, que pelo que a senhora do café disse, cigano, mijou na casa –de- banho. E onde está o mal pergunta-se?

   Malditos ciganos, não sabia o vento levá-los, guinchou a mulher do café  ( presumo que a dona do estabelecimento, entendendo o café como edifício que alberga efemeramente transeuntes carentes), armada de balde e esfregona farfalhuda.

   Mijou à parede, mesmo ao lado da sanita, nojento! vociferou impiedosamente, colocando uma cara-de-boca-de-cu.

   O homem, provavelmente levado pela ventania, não se encontrava nas redondezas, enquanto a relinchante esfregadora procurava o unânime assentimento dos carentes, efémeros clientes da globalização. Eu, que tudo sei, poderia adiantar que o vi agora mesmo entrar no barbeiro do quarteirão seguinte. Mas que interesse tem isso para agora...

   Depois do árduo trabalho de limpeza da retrete, a senhora empresária sentiu-se aliviada. A sua alteridade reforçara-se. O “nós” consolidara em ritual suspenso e ávido de movimentos de nucas.

   O dia começava a raiar quando o antropólogo entrou no café. Trazia, como sempre que trabalhava no ofício, a pele de outro. Confundia-se com o objecto de estudo. Mimetizava-se de “homo falsus”, para ser levado a sério.

   Sentou-se com a barba de cem dias. Pediu café. E, para agradar aos fregueses, uma aguardente velha. Seguramente mais velha que a sua barba e mais nova que a sua vida. A aguardente é claro. O que nada nos adianta sobre a sua idade. A dos dois é claro. A não ser que ambos tinham mais do que cem dias. O que já antes era óbvio: ninguém, com menos de cem dias, pede uma aguardente e nenhuma aguardente velha que se preze tem menos de cem dias. Que confusão. Quem disse que o caminhante fazia o caminho?! Voltemos ao caminho.

   Tragou primeiro o café com cheirinho e depois, devagar, em pequenos goles a bebida ardente. Socializando-se com gozo. O tempo parou por breves instantes. Só o vento se ouvia inquieto.

   O antropólogo sentia a nova pele aconchegar-se ao "velho" corpo enquanto um prazer intelectual profundo o colocava nos interstícios do tecido social e lhe corrompia a identidade. O tempo, como atrás víramos, parara e era preciso dar-lhe vida. A festa não pode ser eterna. A sociedade é um fluir incessante que não pode parar. Parar, como tão bem Lapalisse frisou, é morrer. Ficar encantado à espera do sapo. Ou do príncipe?

   Esticou o gozo até onde pôde e subitamente levantou-se e pagou. Antes de sair foi ainda à casa-de-banho. Depois, despedindo-se com um claro “até-logo”, entrou no vento e desapareceu rapidamente na direcção do quarteirão seguinte. Alguns fregueses pensaram a medo: que cigano simpático...

  O café entrou no remanso turbilhão (rodando para a direita como sempre acontece no hemisfério norte) da normalidade. As conversas de catação voltaram a escorrer sem fio afrouxando as tensões. Só o vento se ouvia inquieto.

   Mas o tempo, que não é previsível, logo voltou a entrar em turbilhão        ( agora rodopiando para esquerda como sempre acontece, com os turbilhões catastróficos, no hemisfério pobre) gerando uma confusão momentânea na ignorância dos clientes.

    A dona do café, que não era ingénua, tinha ido espreitar à casa-de-banho.

    Malditos ciganos, uivou. Não sabia o vento levá-los, guinchou.

   Alguns fregueses pensaram sem medo: os ciganos são sempre falsos.

   Eu, utilizando as mesmas premissas, cheguei a outras conclusões: nunca se pode confiar num antropólogo enquanto trabalha. E, manuseando outras premissas, diria mesmo: muito menos quando não trabalha.

 

   Seriam umas onze horas, duas horas passadas sobre os dramáticos acontecimentos ocorridos, quando o antropólogo voltou a entrar no dito estabelecimento comercial. Alguns fregueses, especialmente freguesas, seguiram o seu deambular ondulante, pelo café, até à mesa escolhida para pousar. Roupas primaveris e uma cara escanhoada pareciam fazê-lo mais novo. 

Mais novo que certas aguardentes velhas.

   Sentou-se e pediu um café e um queque com passas. Mordiscou o queque enquanto ia bebendo o líquido quente, devagar. Adorava a mistura dos dois. Molhou mesmo o bolo no café.

   O ambiente não se alterou significativamente com a entrada do estranho. Um caixeiro-viajante, pensou uma mulher mais nova, mergulhando em viagens para longe. O vento amainara lá fora.

  O cheiro a mijo ainda não se tinha dissipado completamente apesar da esfregadela profissional. A dona do café estava feliz. A vida corria sem sobressaltos e os momentos eram dentes em roldanas de velho relógio com corda para uma semana.

   Passado um bom bocado, e depois de umas miradas com interesse à telenovela da hora do almoço que corria na televisão, o antropólogo levantou-se, dirigiu-se ao balcão, pagou, foi à casa-de-banho e saiu despedindo-se:” até sempre”. Os fregueses responderam-lhe cordialmente e retomaram a postura de efémeros carentes sem lugar nem futuro.

      O cheiro a mijo tinha aumentado consideravelmente.

   Malditos ciganos.

   A dona do café atribuiu-o ao vento que amainara lá fora.

    

 

 

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publicado às 21:43


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