Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
A minha adorada mãe fez no dia 13 de Janeiro 80 anos. Em grande forma, parte para mais uma década de vida intensa e com imensos projetos para cumprir.
Aqui vai um dos seus poemas:
Não me perguntes quem sou
não te poderei dizer agora
sou um corpo sem alma
que a vida deitou fora...
Maré cheia e calma
num vaivem constante
murmúrios do mar
que o vento conhece
e os ouve distante,
sou sombra ao luar!
que de amor padece serei tudo e nada!
lamento ou tristeza...
grito de alvorada não tenho a certeza!
Não me perguntes quem sou,
não me conheço
no universo onde estou
e onde pertenço.
A 4 águas editora apresentou e apresentou-se na livraria Bulhosa com o livro de Casimiro de Brito, "69 poemas de amor"
Sexta- Feira lá subirei, com muito custo, à cidade. Dever de editor. Só por isso abandono o meu sagrado eremitério. E mesmo assim, até ver...
Apareçam!
A ópera ecoa no pomar saindo da antena 2, do rádio da Ford Ranger. Continuo a minha saga de apanhador de alfarrobas. Agora quase só ao fim de semana que o trabalho principal ( o que me dá o pãozinho) já recomeçou. Nesta fase da apanha estou na zona mais sensível. Num pomar que eu próprio plantei: charruei a terra, marquei compassos e linhas, abri covas, plantei as arvorezinhas, reguei nos 3 primeiros verões, podei regularmente, e amei-as muito. Só não as enxertei porque o engenho e a arte não o permitiram. Uma delas é muito especial. Foi o meu pai que a semeou num vaso e tratou nos primeiros anos. Quando ele morreu, transplantei-a. Foi a primeira alfarrobeira da primeira fila deste meu projecto. Um vizinho, a quem emprestava o tractor, e como compensação me lavrava o pomar, ainda lhe meteu um disco da grade pelo tronco adentro. Sobreviveu e é hoje a mais distinta e formosa alfarrobeira do pomar. O amor faz milagres...
De vez em quando, vou à pick-up fumar um cigarro deitado na caixa da viatura, enquanto as vozes percorrem as alamedas da memória. Neste trabalho duro e solitário (ainda convidei o pessoal lá de casa para me acompanharem, mas outros valores mais altos se alevantaram) a ópera opera ( desculpem-me o trocadilho foleiro) uma magia fabulosa e anestesiante.
Os cactos rasgavam o alcatrão na estrada ardente. Fomos partilhando pedras rasgadas por rubis. As cumeadas das serras distantes embalavam os sonhos da multidão e a estrada leva às portas da anunciada sabedoria.
Queres comer uma pedra, disse-lhe levantando o joelho à altura dum sorriso.
Eu levanto-me e curvo-me perante a voz rouca do vulcão.
Queres rebolar na erva seca? Respondeu-me sem convocar a minha ignorância. Não, os passos que partilhamos não compreendem os calhaus que calcamos, que calcamos na longa solidão dos tempos. Falta-me consistência nos passos que tento imprimir no lodo do caminho. O vento transporta-me como folha em Outono agreste.
Começar para nunca mais entender o amor. Mulheres sem lábios aproximam-se cansadas procurando soletrar as palavras que nos ousam anunciar. As letras caem no caminho como dentes metralhados na noite.
Onde se instalaram os vermes da correria paralela?
Na cama rejeitada pelos ossos chocalhantes, na plasticidade do metal, onde partes para nunca mais. Onde entendes a morte nos cais da premonitória incerteza. Nas fracturas intermédias do tempo inacabado.
Não me digas que as galinhas gostam de queijo?, perguntei incrédulo, mergulhado na areia da praia postiça.
Sim, respondeste, com cara de poucos amigos. E têm preferência por queijo da serra.
Seriam quatro horas da tarde de um dia qualquer e o vento soprava de penente, sem dó. A areia fazia-me cócegas na parte inferior dos tornozelos. Na praia deserta começava a fazer sentir-se um odor a precipício e prossegui o questionário inquisidor: e a que sabem as galinhas comedoras de queijo?
A galinha, naturalmente, respondeu a minha amiga, do outro lado da maré mortiça.
Tinha lógica. Galinha alimentada a milho não sabia a milho, pois não? Mas queijo??!!
Bom. Esqueçamos as galinhas que outros problemas amoro-filosóficos mais prementes se alevantam. Mas queijo?...
Ah, e aquela dos ouriços que não gostam de cães?, perguntei maldosamente.
E com toda a razão, opinou espontaneamente a minha bela e colaborante arqueóloga de sonhos escalavrados. Se os cães gostam de ouriços – gastronomicamente falando, claro – é de todo natural que estes não os apreciem e …
Interrompi a sua rápida e incisiva (diria mesmo canina) argumentação, com não menos veloz e flamejante raciocínio. Mas eu gosto de ti e, até às cinco da tarde como prometido, tu gostas de mim.
Não confundas gastronomia e sobrevivência, com amor e ódio. Replicou sem pestanejar. Eu sobrevivo sem ti, sem amor e sem ódio, até ao fim das marés. Sem religião não existem escravos. O amor e o ódio cativam as consciências obtusas da servidão.
Meu Deus!
A abrasão arenosa envolvia-me a pele peluda dos milénios. Nos joanetes assexuados convergiam exaustos os fantasmas da perplexidade funesta. Da atmosfera cálida. Reacção dos poros epidérmicos à invasão sedimentar. Na imaginação imensa da maresia, atropelavam-se cães, galinhas, ouriços e sexos. Sexos brandos e apocalípticos, soçobrando de espanto.
O ódio aproximava-se devagar, como era conveniente. Conveniente e imperioso. Na vastidão absoluta dos sentimentos inertes uma gaivota de papelão guinchou na tarde. Da anti-praia sons da aproximação do Levante invernoso. As areias da vida movediça envolviam-me calorosamente e sem mágoa visível. Dizível, pelo menos. O fim da tarde fazia o seu caminho, inexorável.
A minha tia alimentou os felizes galináceos a queijo e nunca se queixou da cor da canja. Mesmo a crosta, que envolvia o caldo milagroso, lhe era meio indiferente. Aproveitava-a para barrar o pão.
O atrito da caneta do tempo soava sulcando o papel da vida. Arrepiava no silencioso tombar do dia. A solidão, brutal e sanguínea, assomou às cinco da tarde de um dia qualquer. Até ao fim das marés.
Texto para o Luíz Pacheco. Um escritor como outro qualquer.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.