Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Quando cheguei, atraquei de mansinho ao porto – há que oferecer a quem nos espera a ternura da beleza – e saltei da embarcação que me conduzira com uma desenvoltura que me surpreendeu: a velhice lentifica tudo, e tudo aproxima da horizontalidade os dias da proximidade ao indizível silêncio que nos espera. Às gaivotas dolentes, lancei o meu olhar humano de superioridade vulgar e continuei ao encontro do nada embrulhando-me nas ruas estreitas e escuras que deixavam as águas do mar para trás. As ruas que me tragaram de imediato como se engole um engodo pensando do próprio isco se tratar. Uma música ricocheteava nas paredes sujas e gastas da cidade que me conduziam os passos. Os passos e a alma. A alma que se limitava há anos a seguir-me como canídeo obediente e fiel. Domesticada, arrastada pelos caminhos que o destino traçara. Destino de que troçara quando o corpo jovem e cruel rompia a vida caminhando nos limiares resvalantes dos abismos. Corpo e alma correndo por entre as labaredas flamejantes em cavalgadas irregulares e insanas. Corpo cavalgando o desejo da carne, alma navegando as alterosas ondas da inquietude existencial. Uma alma estrangeira, desejando o impossível das desassossegadas tentações, ampliando as liberdades de quem quer o infinito. Quando, cansados da longa correria e da solidão dos caminhos divergentes, pararam e se encararam como nunca fora possível, a alma exaurida conformou-se à sua sorte: o conforto do veículo que a acolheria. A segurança do corpo envelhecido.
Um tango antigo soltava-se da porta de uma taberna escondida. Um corvo acorrentado habitava uma tabuleta com o nome do estabelecimento. Loucuras, disse o corvo. Loucuras, a tabuleta. Entrei, invadindo a penumbra quieta do interior do tasco. Subitamente, a minha alma soltou-se de mim e juntou-se ao corvo no alto da tabuleta. Loucuras, era o nome do corvo. Loucuras, foi o que minha alma lhe pediu.
Monte Gordo, 17/1/2019
À carne inimputável acrescento o pavor
que a poeira confunde nas respostas
assexuadas da dor.
Não respondo pela loucura que se liberta
do desejo intruso rastejando na pele inflamada e cruel
nas imagens que projeto no vento irascível
deriva que alberga e peia as máscaras reclusas.
O ruído ondula na praia, no mar que se recusa a controlar
a memória convulsa, reverberação carnal que inverte o desejo
e esmaga o conforto do regresso aos ditames
primordiais, inertes angustiados gemendo nos lábios cerrados
rompendo a humidade do sexo, garantindo a imputabilidade
do homem que acordou do sonho antigo
provocação da vida intermitente.
Partilho o projeto de segredo onde a nudez
da narrativa resgata a aura paralela do vazio
eterno da criação
frase de ontem ao encontro da noite, procura da pedra
emersa na pradaria apocalíptica
futuro próximo da visão armadilhada.
A carnificina a que me proponho assistir
arrastará as almas até ao êxodo final, descobertas, restarão
pasto dos abutres do espírito ensanguentado.
(Monte Gordo () 2/11/2010)
Sempre que a noiva comia romãs tremia. Era como se um tufão se aproximasse da costa. A romã actuava nela como um poderoso afrodisíaco. Quando o tempo das chuvas se aproximava, devagar como convém nos secos clima mediterrânicos, a preocupação invadia-me secretamente. Não tinha sido diferente naquele ano.
Do verde amarelado, foram abraçando o vermelho erótico e clamando pelo passante. O dito era eu, na maior parte das vezes. Mas, na calmagem dos caminhos calcários pousavam, por vezes, pés descalços e dançantes: era ela, a minha noiva.
Conhecia-a há três anos. Doce como o fim das tardes de verão sem vento, bela como só eu sabia, arrancou-me o coração no primeiro momento. O futuro toldou-se-me num tempo irrecuperável e incerto, como a filosofia que atrai multidões sequiosas de sangue. E diria ainda mais; a solidão recuperou o seu significado supremo: a dor sem possibilidade de sentir o prazer do coração aflito. Eu para quem a independência era a vida. Nesse dia, há muito esquecido, entrou em mim uma luz que me sequestrou do mundo e me enlaçou na morna sepultura do, dizem, amor.
Era doce como a tarde que se faz esperar. Como o caruncho da noite que não vem. Chegou e ocupou o lugar que era meu. Ocupou ainda mais de mim do que eu alguma vez teria ocupado.
Há três anos, era eu um rodopio fogoso e despreocupado, alegre e bondoso. Mas como mudei em três anos! Vivia para ela e vivia dela. Os dias passavam e a embriaguês sussurrante das fímbrias dos seus vestidos entaramelavam-se nos meus sentidos. Relia no meu corpo a sensação cruenta e terna dos afagos de minha mãe. Os pensamentos não engrenavam no segmento seguinte e encavalitavam-se em cacos de ideias incompreensíveis e dolorosas.
Ela, a minha noiva, possuia-me e o enamoramento violentava cada vez mais a minha identidade, a minha alma secreta. Penso até, e só hoje o comecei a vislumbrar, que a minha alma saltou para o corpo dela. Vive nela e parece feliz. É... é apenas um pressentimento. Mas o vazio que o meu corpo encerra leva-me a acreditar cada vez mais nisso.. Um vazio leve onde me espanto com o desconhecido de mim para mim mesmo. Onde me perco sem referências, onde é necessário construir para recentrar o mundo. Sim, porque o centro do mundo passou de mim para ela, a minha noiva. E quando ela se afasta sinto-me periférico e só. O vácuo que transporto não permite a edificação de um novo eu. Os blocos constituintes de uma nova alma, sempre tão difícil de arrumar, não se enleiam neste ambiente sem ódio, sem lágrimas e sem idade. É uma tarefa impossível, e sofro, e aproximo-me cada vez mais dela, do meu centro do mundo, da minha alma, da minha noiva.
Neste lento aproximar do tempo das romãs, uma ideia solta e intermitente azougava-me os ouvidos. Vinda do além (da minha alma emigrada?) a morte segredava, como só ela é capaz. A morte resolve todos os problemas a quem a ela se entrega. Porém o problema parecia intransponível ( incontornável, diriam alguns). A minha noiva transpirava vitalidade nos líquidos e sólidos que a constituiam. Da carne espamódica e dos suores voluptuosos. Das almas que transportava.
A morte precisa de executor. Eu próprio como me poderia apagar sem despedaçar os restos sobrantes da minha carcaça? E o que aconteceria à minha alma fugidia e feliz no corpo dela?
A chuva de outono aproximava-se vinda dos castelos púmbleos que viajavam num céu sem estrelas, ribombando apelos completamente imparáveis. As romãs cumpriam o seu destino. O rubi pintava-as inexoravelmente dando-lhes o poder da paixão, ígnea e caprichosa.
Os pensamentos da morte trilhavam o seu caminho de pó e lama, de som e de silêncio, na consciência esburacada do homem sem alma.
As chuvas começaram a cair, grossas e quentes, levantando partículas do estio longo e seco. Água e terra misturavam-se no ar. Primeiro, preenchendo as rachas da terra ressequida e exangue. Depois, atingindo as raízes esquálidas das árvores sedentas e das sementes das ervas daninhas. Das flores que se erguerão na primavera longínqua. As romãs colheram o sinal. E o sinal alastrou pela terra desolada onde o restolho amolecia. As galinhas deixaram de parir e a minha noiva cantarolava a toda a hora. Quando a primeira romã estalou prenhe, deixando escapar um sorriso da cor da carne, não se conteve e precipitou-se, inconsciente, sobre o fruto divino. Vagarosamente, foram desaparecendo nos lábios latejantes os bagos do fruto do amor (romã/amor).
Perante a cena embriagante da possessão das almas que a carne da minha noiva continha, decidi o futuro próximo da vida que nos animava. O resgate da minha alma.
O sorriso diabólico que me aspirou o corpo gemia de prazer e de dor. Os sussurros que sentia soltarem-se dos meus espasmos fundiam as almas que eram nossas.
Revolvendo a terra húmida, sob o olhar concupiscente da romanzeira cúmplice, rolámos inimputáveis como deuses que se degladiam na espuma. As minhas mãos percorriam a pele escorregadia, o pescoço longo e frágil. A minha noiva estremecia e da boca escancarada, escorreu um fio escarlate e doce. Um rio por onde a minha alma transmigrou, regressando a casa.
E tudo serenou na felicidade efémera da tarde.
Anselm Kiefer
Faz hoje 10 anos que transporto. carinhosamente, a alma de meu pai. Nestes cruéis e longos anos, a minha alma e a dele foram-se fundindo até se tornarem numa só entidade espiritual.
Como o veículo que as transporta se assemelha cada vez mais ao que transportava a primeira, cada vez menos sei quem sou eu e quem é ele. E isso dá-me uma serenidade infinita.
Perante o espanto dos dragões nas terras do sol nascente, O Glorioso, O Grande, O Maior ilumina (como um "lampião" que se transforma no Farol de Alexandria) os céus de Oriente a Ocidente: Nelson Évora, medalha de ouro, no triplo salto; Vanessa Fernandes, medalha de prata, no triatlo e Angel Di Maria, ouro ou prata, no futebol. Maior que o país, O Glorioso consegue mais medalhas do que o próprio país de que é a alma.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.