Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Quando atravessei a linha que separava a aldeia do resto do mundo, entrei num sonho estranho que me espantava e ao mesmo tempo esmagava. O medo pesava como a escuridão dos tempos em que as virgens sem consciência pariam profetas. Olhei atrás e vi desaparecer os dias que me abraçaram para sempre. Agora o roteiro seria traçado por mim, as agruras deixariam de ter o amparo da vizinhança.
Lançado na aventura de percorrer os caminhos dos outros, comecei por enveredar na direção que me pareceu mais fácil de entender. O breve cheiro da brisa refrescante. Instinto de animal ameaçado: o vento traria fragmentos do perigo que o futuro transportava e os suores da alma abandonada atingiriam o antro da minha vida, na aldeia difusa no longe que crescia. Enchendo os pulmões com o ar novo que vinha das terras do sonho por cumprir, avancei destemido nas planuras que completavam a traição que urgia desocultar. Voltar atrás era um sussurro incontornável nas paredes opacas da imaginação. A vegetação rasteira rareava nas bermas do trilho esotérico que ladeava o corpo, as árvores deixavam de projectar as suas sombras no espaço que corria sob os meus pés, os pássaros voavam ao sabor da correnteza dos ares sem olhar para os novos amigos da viagem. A própria poeira dos lugares sem esperança começava a assentar com o lastro do vagabundo inexperiente.
O burburinho que se aproximava, transportado pelo vento risonho do além, acrescentava à paisagem um travo acre a solidão. Quando o ruído tomou conta de tudo e, no horizonte, apareceram as primeiras construções brutalizando o olhar, senti o cabelo assustado e espesso.
De olhar turvo e mãos crispadas, entrei na cidade deixando a alma na periferia orbital. A penetração traumática no antro do devir inibe o desejo. A cidade é o fim do sonho e a certeza da inutilidade do retorno.
Durante anos, a minha mãe foi a senhora do meu cabelo. Na minha primeira década de vida, usei risca ao lado esquerdo. Risca euclidiana: direita e vincada num cabelo a dar para o revolto.
Como tenho um irmão mais velho cinco anos, fui ocupando, com facilidade, o caminho que ele foi desbravando. Foi assim que comecei a usar cabelos compridos cedo e a mandar a "risca-da-minha-mãe" à fava, no início da minha segunda década. A tal de risca continuava à esquerda se bem que se tenha tornado sinuosa e imprecisa. Um dia, nos princípios dos anos 70, acompanhei o grupo de teatro da aldeia a uma actuação a Estoi. O meu irmão era uma das figuras principais do grupo onde, mais tarde, eu próprio passearia a minha carcaça pelas tábuas (e os cimentos) dos palcos algarvios (um dia destes irei abordar com mais tempo a actividade teatral da aldeia que ainda hoje vai de vento em popa). Mas íamos chegando à pitoresca e linda povoação de Estoi, nas fraldas das serranias algarvias, nos barrocais do concelho de Faro. Enquanto montávamos o cenário na sala de espetáculos da Casa do Povo local, deparei-me com uma visão que iria mudar radicalmente a minha vida. Um rapazinho da minha idade, que ajudava no transporte dos adereços, ostentava um cabelo comprido, liso com... risca ao meio. Naquele mesmo dia, passei a usar risca ao meio sempre que tinha os cabelos compridos, o que era quase sempre. Para grande desgosto da minha mãe (esta decisão marcou finalmente o corte do cordão umbilical psicológico que nos unia) e espanto dos meus vizinhos, que eram todos, aldeãos (alguns jovens adultos ainda assobiavam, com quem assobia a raparigas, à minha passagem). Fui o primeiro homem a usar risca ao meio na aldeia. Assim foi até ao fresquíssimo ano de 2009. Cabelos revoltos e risca ao meio foram a minha imagem de marca até ao final do ano passado.
Nos últimos anos os cabelos começaram a rarear de uma forma estranha: só do lado esquerdo da calote cabeluda. A coisa não é ainda muito grave e disfarçava-se bem com uns cabelos mais cresciditos mas, descuidado como sou, lá apareciam com regularidade as tais peladas laterais para grande alegria dos meus filhotes e outros amigos da onça. Nunca tive problemas com mais ou menos cabelo, nem com vir a ser ou não careca mas, só para os chatear, descobri a maneira de ocultar tais clareiras: passei a usar risca à direita e assim estender o cabelo para o hemisfério esquerdo. Bom, até me sinto outro. Uma espécie de Brian Ferry da zona. E até os olhares das mulheres são outros... Só é pena que os cá de casa não tenham valorizado esta fracturante mudança e continuem a risota do costume. Agora um pouco mais convulsiva. São uns insensíveis, é o que são. De estética e beleza parece que não dão uma para a caixa.
Anselm Kiefer
Hoje, o meu pai fazia anos. Como de costume, vou ao cemitério colocar um raminho do seu pinheiro, junto à sepultura. O pinheiro já tem três metros de altura e foi semeado pelo meu pai numa lata de tinta e depois transplantado para o local onde está. Até há 10 anos atrás, foi ele que o apaparicou e transformou no lindo pinheiro que é. Desde então, tenho sido eu a cuidar dele. Desde então, também eu semeei (e depois plantei, seguindo os procedimentos do meu pai) o meu pinheiro e os meus dois filhos os seus pinheiros. Um sobrinho meu também tem o seu pinheiro. As idades dos pinheiros seguem (sem escala cronológica) as idades dos seus patronos. O do meu pai é o mais velho, a seguir o meu (já com uns magníficos 2,5 m) e, finalmente, o do meu sobrinho, o mais novo de todos nós. Os dois mais velhos, já dão pinhas e pinhões com fartura. Só há 5 pinheiros na quinta.
Ali, junto à sepultura, entre duas alas de ciprestes imponentes, fumo um cigarro e olho para as fotografias do meu pai. Ali estou eu a olhar para mim. Só é pena (pena para mim, é claro)que o cabelo dele não seja o meu. O resto é de uma semelhança perturbadora. Perturbadora mas confortável.
Não sei bem porque venho aqui. O meu pai vive na memória das pessoas e, por isso, está mais em mim do que ali naquele buraco dum velho cemitério de aldeia. Talvez seja pelo silêncio. E o silêncio elimina barreiras, funde consciências e ajuda a unir o desunido. Vou ali colocar o raminho de pinheiro duas vezes por ano. No dia em que morreu, e no dia em que fazia anos. 29 de Janeiro e 28 de Setembro.
O seu pinheiro está sempre presente na quinta. Passo por lá todos os dias. Afago as folhas com as pontas dos dedos, e às vezes o rosto, todos os dias. Quando as gotas de orvalho e de chuva da manhâ ainda se desprendem das folhas pontiagudas, confundo as minhas lágrimas com as suas.Todos nós somos transportadores de almas. Das almas dos que nos tocaram fundo. Dos que sentimos falta sempre que não estão. Ninguém é só dele. A vida reproduz-se nos outros e sobrevive nos outros. Eu transportarei a alma do meu pai até ela se fundir com a minha. E passaremos a viajar à boleia de outros que nos queiram bem. Os pinheiros da quinta serão testemunhas desta caminhada colectiva.
Mas deixemo-nos de nevoeiros mentais que não interessam muito a quem está lá fora recolhendo os raios solares. No cemitério só estava eu e um gato. Lembrei-me de quando deixei de fumar (já voltei ao maldito vício) e vinha ao ritual do raminho, nesse dois momentos do ano, fumava um cigarrito. Dois cigarro por ano não podiam fazer mal nenhum. Olho demoradamente os mortos vizinhos do meu pai e todos eles foram vizinhos vivos. Nossos vizinhos. Na aldeia todos são vizinhos.
Quando me dirigia para a saída, e depois de ter passado pelas sepulturas dos pais do meu pai, percorrendo a rua dos ciprestes, rostos conhecidos iam desfilando à minha passagem.
A maior parte das pessoas que conheci e conheço na aldeia já ali estão. Um dia também terei o meu rosto ali vendo passar vivos choramingas transportando almas de gente que não morre.
Há 120 anos nascia em Lisboa o maior génio que esta terra à beira-mar plantada viu nascer.
Um dos maiores que a Humanidade acolheu no seu seio. Um homem infeliz que trouxe a alegria e a sabedoria aos que vão ao encontro das suas palavras. Legou-lhes também a aconchegante solidariedade da tristeza.
Com ligações familiares a Tavira e, principalmente, à Conceição, a minha aldeia, fez aqui nascer o seu heterónimo Álvaro de Campos.
Ainda hoje, um número significativo de casas do núcleo antigo da Conceição pertencem à sua família, mais precisamente ao seu sobrinho, o engenheiro (como Álvaro de Campos) Jacques Pessoa. Vivendo numa espécie de castelo no centro da aldeia, é a figura chapada do escritor e transporta a presença dos múltiplos "eles" que o poeta carregava. Tenho a honra de ser seu amigo e da sua mulher.
Deixo-vos um poema para Álvaro de Campos escrito por Pedro Jubilot ( um poema tão pessoano que me enganou pensando-o do próprio "engenheiro) parecendo ter sido escrito na "Praça da Alagoa", uma das mais belas praças ajardinadas da nossa cidade e onde, parece, o poeta tinha casa. Todo o poema respira e transpira Tavira: a ponte romana, o rio Séqua, o largo da alagoa, Veneza (Tavira é muitas vezes comparada a Veneza), o rio na maré baixa, o "engenheiro-na-cidade"...
"a última visita de álvaro de campos a tavira"
a paisagem vista da mesa do café
imagem de infância : largo da alagoa
igreja da nossa senhora da ajuda
o homem que de gabardine cinzenta
atravessa a pé a velha ponte romana
olhando para o rio de uma maré baixa
o homem que de roupa interior branca
atravessa o corredor da residencial sécqua
olhando para o espelho acendendo um cigarro
uma mulher chegando num carro preto
olhando para o edifício fugindo da chuva
toca a campainha e sobe apressada
uma mulher musa que traz cartas e mapas
projectos e quer saber a porta do quarto
do senhor engenheiro bate e ele abre-a
o homem alto e magro cabelo liso aparado
tem febre e escreve : “cada rua é um canal
de uma Veneza de tédios” a frase solitária
premindo as teclas da underwood"
de Pedro Jubilot
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.