Nunca conseguirei chorar em ombro algum. Parto e uma parte de mim fica. Resiste.
Eu mesmo plantei a flor que dei
no dia em que resolvi partir, iniciar a caminhada para esquecer. Sei que nesse caminho procurarei a distância que me poderá trazer o esquecimento, uma jornada tão longa quanto possível. De bermas envenenadas por palavras cruéis e falsas, por margens lamacentas onde crescem sacerdotisas profanas. Não sei se o sabor das ervas mastigadas, o odor intenso da daninha fragrância, é o que se desprende da pele, se o vazio que, sobressaltado, transporto . Se as sombras que me ocultam o caminho serão obstáculos insanos que a tristeza impõe, se balizas que me conduzem ao longo estertor da ausência. Seguirei, no entanto, sem olhar o que para trás ficou, levando apenas as minhas lágrimas de alegria. O antes não perturbará o que hoje conduz ao amanhã: o futuro não existe sem as inquietações de quem amanhece no princípio dos tempos, nem acorda sem esfregar os olhos como se tudo fosse como era antes de ter acontecido. Tudo renovado como se aprendêssemos a renegar a garantia do retorno. Do regresso ao que já não existe: mesmo que o queiras, que nós o queiramos, nada se mantém como era! Da manutenção do eterno emerge a potência que gera a mudança, que varre o passado e faz emergir, na onda imparável, medonha e terna, o coração que carrega a dor de se querer inerte. Riem as magnólias nas ruas desertas. O ser que erra envolto em luares sombrios derrama pelas calçadas húmidas o clamor dos peregrinos perplexos, o clamor dos maestros insolventes. Vou para além dos pensamentos antigos, onde delírios se decompoem em silencioso pulsar de desprezo. Onde a última vez foi um casamento entre opostos divinos. Não chovera nos primeiros alvores dos dias infelizes. Nunca conseguirei chorar mais do que o sacrifício dos meus dedos cansados. Os rios morrem, e, por isso mesmo, as dores dos que mortos transportas e vivos permanecem são vozes mais rebeldes do que as de vagabundos à procura de poetas da verdade, poetas exibindo a sapiência da tragédia, renegando o poder de convocar as resistências da maldade.
Um dia voltarei ao lugar que nos prende e arremessa no precipício da noite virginal.
Cativa, 19 de dezembro de 2022