O que os homens criaram usando as palavras dos deuses foi um território pejado de utopias. Utopias divinas. Vivendo os humanos realidades cruéis, indomáveis e instáveis, os deuses oferecem um cenário alternativo, apelativo, prometendo um fim moralmente justo, agradável e duradouro, a perseguir e, ao mesmo tempo, desenharam abismos à beira dos penosos, sinuosos e apertados caminhos da salvação. Os problemas, geradores de ansiedades e dores ainda mais excruciantes, surgem quando te desvias e resvalas pelos barrancos abaixo. Enquanto as feridas se vão abrindo no corpo que rebola, aos trambolhões, numa agonia sem fim. Nenhuma ferida irá cicatrizar: quando o processo se inicia, nova crista do acidentado mergulho, irá esfacelar a chaga exposta. Fossem os deuses os avaliadores dos caminhos abençoados propostos e, seguramente ninguém, nem os mais ambiciosos e corajosos dos crentes, chegaria a salvo ao destino derradeiro. Sendo alguns homens, em representação do poder divino, que não vem a ser senão um poder autorrepresentativo, os responsáveis pela triagem, não existe imparcialidade possível. Mas, também nisso se pode ver a omnipotência de Deus: ninguém poderá deixar-se julgar pelos pecados cometidos, quando o criador dos impedimentos e dos tabus é a mesma criatura que os julga. Ou seja, quanto mais o homem se apodera do mecanismo que superintendem as leis divinas, paradoxalmente, maior é o poder de quaisquer divindades. Que não existindo, a não ser enquanto criatura cultural, se apodera da justiça, da moral, e mesmo, da ética que os seres humanos têm vindo a tecer com as linhas e o pano postos à sua disposição pela natureza. Pelo algo e pelo nada. Materiais que vão gerando uma outra natureza, sempre em dialética conturbada e, por vezes, mortal. A cultura constrói-se, quase sempre, contra a natureza. E se algumas vezes isso faz sentido do ponto de vista dos homens (uma barragem contraria a seca, um implante dentário revela-se, funcionalmente e em termos estéticos, de grande utilidade, ou o fabrico de papel destrói e baralha o coberto florestal), outras vezes constitui uma pura inutilidade ou, mesmo, é uma afronta aos equilíbrios ecológicos e à própria sobrevivência do planeta, como tão bem estamos a constatar nesta nova era do Antropoceno.
Curiosamente, nesta corrida desenfreada para os abismos reais das alterações climáticas, é Deus que continua a faturar. Que continua a impor-se ao seu criador. E é só ver a força crescente dos negacionistas da ciência e da razão que proliferam como cogumelos em estrume de cavalo. Sobretudo nos países mais poderosos. E, neste paradoxal cenário, nesta contenda mundial, em que se digladiam o obscurantismo e a razão, Deus conduz o seu rebanho feliz, e furioso, para o Armagedão.
Cativa, 5 de setembro de 2020