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(acabadinho mesmo agora, depois de uns dias de aflição, cá vai sem revisão nenhuma...)
O sexo dos anjos
O anjo só tinha uma asa e isso incomodava-o. Voava aos supetões, para baixo e para cima, como um pardal. A elegância própria do voo dos anjos era-lhe estranha. Por inimaginável que soe, tinha nascido assim. Nascer, para um anjo, já é uma aberração. Os anjos são, por natureza (sic), eternos e por isso inascentes e imorredoiros. Aquele anjo, este, não só tinha nascido, e por conseguinte faltava-lhe o infinito à posteriori, como o tinha feito sem uma asa. Se seria imortal só o devir nos traria a resposta. Acreditamos que sim: a vida libertá-lo-ia do padecimento final.
Quando o vento soprava irregular e violento, o problema do voo tornava-se deveras complicado. Chegava a parecer uma folha de árvore à deriva nos ares, rolando sobre si próprio, parecendo, a todo o momento, que se iria despenhar. Dir-me-ão os leitores, sábios na complexa matéria da aerodinâmica do voo, que só com uma asa nem um pássaro voaria. Nem o mais leve dos fuinhas. Mas, meus amigos, a matéria que compõe os anjos não é a mesma que nos acompanha a realidade. Não sendo por isso suscetível a interpretações através das fórmulas e modelos físicos que interpretam o movimento e explicam as suas trajetórias. Ninguém alguma vez pôs em causa a ascensão da Nossa Senhora. E que eu saiba a virgem senhora não estava municiada de apêndices alados. Um sequer. Subiu e pronto. A propulsão da ascensão nunca foi referida como impossibilidade de viagem. Ascendeu e nada há a discutir. Aliás, um dogma não se discute. Este anjo voaria mesmo que não tivesse asas. Como a Nossa Senhora, Jesus Cristo ou o mais pragmático Maomé. Também não consta que o Espírito Santo, que tem as asa regulamentares – sempre duas, as use nas suas deslocações. Alguém já O viu batê-las? (para evitar confusões, alerta-se os leitores para que nos referimos ao bater de asas e não de outras batidelas que o espírito crítico sempre associa a “batê-las”) Sentiu a deslocação do ar do batimento da envergadura? Então por que duvidam das capacidades voadoras desteanjodeumaasasó? Aceito a desconfiança no abstrato. Mas se eu o afirmo é porque é verdade. Este nosso anjo voava! Aos supetões, mas voava. Ia a todo o lado e não recorria às pernas para grandes caminhadas. Ultrapassava todos os obstáculos terrenos recorrendo ao voo. Como qualquer ente alado. Percebido!?
Mas a sua tristeza consumia-lhe os dias. A risota dos outro anjos escarnecendo do seu voo, era insuportável. Nem pareciam anjos. Os anjos são anjos. A essência do bem e do bom iluminando o mundo. Os homens por quem estão encarregados de velar. O mundo visível e invisível; real e espiritual. (num aparte que me deixa envergonhado como escritor, quando escrevo a palavra espiritual lembro-me logo de bacalhau espiritual, mnham,mnham) É certo que o Diabo era um anjo que foi destituído por malvadez intrínseca e imortalidade ímpia. São as exceções que confirmam a regra., diria, para manter a reputação das criaturas que medeiam entre os homens e os deuses. Também a este nosso amigo anjo estava vedada a guarda de humanos. Que diria um pecador terreno ao facto de ter um anjodaguarda sem uma asa? E o mais grave, sei-o de fonte segura, é que os próprios arcanjos tapavam a cara com a asa à sua passagem. Riam para dentro envergonhados. O nosso anjo desesperava com a risota dos seus pares e superiores. Um dia tomou uma decisão drástica. Resolveu partir para longe. Se é que há longe ou distância para os anjos.
Abalou pela calada da noite, aproveitando uma reunião geral convocada pelo arcanjomor para tratar de assuntos respeitantes a uma nova conceção de competências para o desempenho da função de anjodaguarda - como estava liberto desta incumbências não tinha sido convocado -, caminhando pela estrada que levava ao mundo dos homens. A irregularidade do voo poderia chamar a atenção dos anjos de guarda. De guarda dos anjos, neste caso. Já lhe doíam os pés e as pernas quando parou para descansar da caminhada. Sentou-se numa pedra na margem do caminho. O crepúsculo cobria toda a extensão à sua volta. Massajou as pernas e os pés e recomeçou a caminhada. A falta de uso entaramela as estruturas, lentifica a ação. Estugou o passo rasgando a escuridão, renovado pelo descanso. A fronteira estaria, pelos seus cálculos, já descontada a pouca experiência em atividades pedestres, ao cair da noite. A decisão era de alto risco. Tinha-a ponderado longamente e a decisão tomada estava bem alicerçada na longa reflexão. Atravessar a fronteira para o mundo dos homens significava uma viagem sem regresso. Desde que o Paraíso tinha sido extinto, por incumprimento de contrato por parte dos moradores de tão aprazível condomínio, que anjos e homens nunca mais conviveram irmãmente. Pouca gente sabe, mas o Paraíso foi mesmo extinto. Expulsos foram Eva e Adão e toda a pandilha de anjos e arcanjos e seus semelhantes. Homens, para as rudes terras das sombras. Anjos para junto do senhorio de todos e de tudo. Ainda hoje não está esclarecido o papel dos anjos nas desventuras do primeiro casal aquando da precipitação no pecado original. Segundo fontes esptéricas geralmente bem informadas tudo não teria passado de uma questão de lutas fratricidas e fracionárias entre anjos por questões de poder. Políticas de anjos, diríamos hoje. Bem, deixemos estas complexas manigâncias, se bem que muito interessantes, de assuntos politico-teológicos. O que aqui nos interessa são as aventuras e desventuras de um anjo solitário e rejeitado que arriscou a sua vida para renascer. Que ousou recomeçar a partir do nada num mundo hostil e desconhecido.
A luz da madrugada inicial já inundava o vale que separava o mundo dos anjos do mundo dos homens. Ainda hesitou antes de transpor a fronteira. Era o tudo ou nada. E o nada aproximava-o de si próprio. O tudo do mundo anterior ao nada. Entrou. Nesse mundo onde não havia significado nem significante. Onde a razão de existir não existia. Nada tinha explicação e só a morte parecia impor alguma ordem na vida dos homens. Uma capicua existencial.
Entrou, decidido, sabendo que nada voltaria a ser o que tinha sido. Compôs o casaco grosso e comprido, cobrindo a mono asa, e avançou pela estrada silenciosa que penetrava o bosque vizinho. Depois de algumas horas de caminhada, sentiu-se, pela primeira vez, livre como nunca o fora. Ouviu um ruído de motor a aproximar-se. Um camião velho e desengonçado evoluía lentamente ao seu encontro. Estendeu o polegar direito apelando à boleia. Um marreco dos grandes, pensou o camionista enquanto se preparava para refrear a viatura. Para onde, perguntou parando junto ao caminhante. Para onde, repetiu o anjo. E para onde vai o senhor? Para a aldeia da mina. Não que lá more, vou carregar minério para levar à grande cidade. Pode ser, atalhou o anjo sem entusiasmo.
Até Ferrarias, assim se chamava a aldeia da mina, não trocaram uma palavra. Quando finalmente o distinto camião se deteve estremecendo convulsivamente, entraram na taberna que dominava a praça central e beberam duas aguardentes de figo. Finada a convivência, apertaram as mãos e despediram-se no mesmo mutismo da viagem.
O anjo tinha as coisas bem pensadas. A aventura tinha riscos eminentes e consideráveis. Mas, desde o longo casaco de lã aos passos a seguir depois de instalado, tudo estava registado num roteiro mental longamente congeminado. Escolher um nome, encontrar uma morada, arranjar uma ocupação. Forjar uma identidade, uma biografia credível. Depois, só depois, viria o passo mais arriscado e complexo. O extirpar da asa e, assim, um novo nascer. Ângelo. Era um nome vulgar e ao mesmo tempo mantinha-lhe um halo da sacralidade de antanho. Instalou-se numa velha pensão, num quarto esconso e barato com vista para o enorme monte de escombros junto à entrada da mina. A ganga dos dias. Com uma facilidade inesperada, conseguiu trabalho na mina. Seria mineiro. Escavando as entranhas da terra. As profundezas labirínticas da escuridão. Para um anjo, habituado às elevações etéreas, seria uma experiência dolorosa. Mas que o levaria ao lugar do homem mais rapidamente do que qualquer outra profissão. Grandes tormentos atiram-nos para o centro das realidades. O centro da Terra.
O trabalho era duro e sujo mas mostrou-se o ideal para os primeiros tempos de vida num mundo novo. O frio das profundas galerias permitia-lhe trabalhar sem retirar o estranho casaco. Os colegas de trevas eram pouco faladores e, ainda menos, curiosos. A dureza do trabalho não se ajustava a muita festa pós-laboral e, portanto, a dar nas vistas. Até para o varrimento visual que os anjos fizeram a toda a região nos dias seguintes à fuga, se bem que nada pudesse ser feito para o levar de volta, a não ser através da palavra engenhosa e sugestiva, as profundezas das velhas galerias eram impenetráveis. Estava seguro num ambiente instável e perigoso. Os proventos amealhados serviriam para atingir o último objetivo a concretizar no sentido da integração total. Andava, não diríamos feliz, sossegado. Os mineiros são pessoas reservadas e menos curiosas. Pouco se interessam pelas vidas dos que com eles esgravatam as profundezas. As entranhas da litosfera. Se a princípio o inchaço proeminente que empolava o velho casaco tinha estranhado a alguns – havia mesmo quem tivesse notado ondulações da relevante corcunda -, o que é facto é que não tinham passado de leves e efémeras especulações. Na escuridão labiríntica, na rudeza do trabalho, quem quererá lá saber de marrecas movediças. O espírito de todos preocupa-se, sobretudo, com o inimigo número um dos mineiros: o grisu assassino. E bastava que um dos rouxinóis deixasse de cantar para que todos ficassem de sobreaviso. O medo invadia as estreitas galerias e retesava os corpos. A pele seca colava aos ossos e o inferno era uma visão mais aterradora que a mais aterradora realidade da superfície. Talvez até por uma questão de proximidade. Portanto, ali não havia tempo a perder com frivolidades. Ali as especulações deambulavam, quase sempre, pelos mais importantes assuntos da filosofia ocidental: a vida e a morte.
Algumas vezes os milagres acontecem
Nas esplanadas do café, não chegam a horas
Para acordar quem precisa de repousar
Das loucas filas que se estabelecem
Nos esconsos armário da felicidade.
Há pessoas que tomam pílulas para dormir
Quando descobrem que a vigília é um estado
Terminal que visa perpetuar as conversas ambulantes,
As serpentes que perseguem as caras que emergem das noites.
Pesadelos ambiciosos no sono inútil, cancro que se instala
Nas ideias que fumegam nas chávenas de café.
O café é forte e o empregado atende as velhas
Com malandrice concupiscente. Ali, só a morte
Impõe o cumprimento da vida. Se não morrêssemos,
Ninguém largaria uma conversa a meio, ninguém
Se levantaria da esplanada fria sem se despedir
Para sempre. Todos fumávamos e ríamos e troçávamos
Da inflação, não haveria subsídio de férias, nem paraísos fiscais,
Nem mesmo bancos na Suíça. As férias seriam eternas
E a sobrevivência estava assegurada pela imortalidade.
Não haveria ambivalência nos escritórios onde
Se negoceiam as dívidas soberanas e as agências
De rating não fariam poemas atirando dados.
Nas esplanadas continuar-se-ia a tomar café,
Talvez aguardente de medronho da serra, as velhas
Seriam mais velhas, pois a morte nunca chegaria,
E os coveiros frequentariam workshops, fazendo
up grade dos ossos que manipulavam,
E passariam a exercer carreiras de sucesso
No mundo da alta finança.
No crescente e rentável negócio das esplanadas,
O tráfico de influências daria lugar a happenings
De solidariedade social, performances plásticas
Sem redundância nenhuma, sorteios de ganâncias
Desprovidas de valor ou meetings de pontos de vista dejá vus.
O vil metal chegaria de mercedes-benz, e de carro funerário,
E no coche barroco do falecido d João 5º.
Falecido??!! O que é isso?, perguntariam as crianças
Post mortem. No passado as pessoas morriam,
Ausentavam-se para sempre, explicaria um transeunte
Manhoso, erguendo, respeitosamente, os olhos ao céu.
Há cadáveres famosos que nos enformam os desejos.
Teimam, mesmo defuntos – descansados sejam -, em alienar-nos
O pensamento, em gritar fazendo estremecer as pedras
Tumulares. Se não morrêssemos, o futuro não seria o vazio
Que tentamos escravizar, o mundo que não conseguimos
Desocultar quando avançamos na escuridão.
Na esplanada os pássaros depenicam partículas
Recebidas por correio eletrónico, provocam os adultos
Com peidos monumentais e sorriem às crianças
Que os escolhem para amigos desinteressados.
Se não morrêssemos os cientistas deixariam
De tentar explicar as coisas e tentariam interpretar o nada,
O nada e a sombra que anuncia o fim sem fim. Nem é fácil
Imaginar o poder dos mecanismos que regem os mercados,
Nem fácil colocar bombas nas instalações dos bancos de investimento.
O grito fascista que ecoou na Ibéria profunda encontra
Seguidores nos caminhos irregulares dos desvalidos.
Viva la muerte, será o regresso às origens onde o vento
Açoita a tarde.
Nas esplanadas voltarão a ouvir-se os lamentos
Das vozes que reverberam as parangonas dos jornais.
VRSA, 21/11/12
pintura de Rui Dias Simão
Da janela escorria uma camisola ensanguentada.
Pingava na terra encharcando o vazio
Que se assomava por detrás das casas.
Três facadas na carne rasgando
Os tecidos nauseabundos, expulsando
O sangue em golfadas efervescentes.
A minha mãe já não mora aqui e o sangue,
Que também é o dela, cai no pântano
Morno cobrindo o chão da cozinha.
A camisola envenenando as ervas daninhas,
Alimentando os vermes que me consomem o corpo.
Agarrem-no!, ecoou como lâmina zurzindo
O ar brutal do bairro sórdido, não há crime
Sem castigo!, berrou o homem sem significado
Que assistia a tudo.
Nunca um crime foi sentido por mim
Nas fronteiras da solidão, respondi eu
Cobrindo a retaguarda.
Ratazanas sem compromissos escapuliram-se
Nas sarjetas iluminadas pelo odor dos enjeitados.
O vizinho do 2º dtº deu a primeira facada.
As outras que me rasgaram a pele e trincharam os ossos
Foram, no calor da refrega, atribuídas a incertos.
Conhecidos mas não identificados nas complexas
Poeiras que ensandeciam a tarde. A camisola
Aspergindo o espetro rastejante da pobreza.
Nunca ninguém fugiu de si próprio deixando
Um rasto de informação ofecendo
Aos caçadores de infinitos
O odor que os levará ao covil da presa,
Ao definhar do ritual do fogo e do sangue
Que rege o ordálio crepitando nas mentes
Experimentadas no silêncio, na viagem
Interrompida por deus.
A multidão rumina dissolvendo as persianas
Ululantes das personalidades elementares.
O crime percorre as ruas por entre
Conceitos duvidosos e ideias lancinantes
Abandonadas pelos que temem os estrangeiros
Nascidos entre os nossos. A matéria
Que compõe os heróis regurgita no princípio
Da noite, cadinho onde se fundem as ilusões,
E o crime assume a vertigem da virtude
Incontestável e una.
O sangue que brotoeja das feridas escancaradas
Sacraliza as ruas por onde prossigo procurando
A caverna dos prodígios labirínticos, a degeneração
Do corpo que reproduz o regresso ao fim.
Duma janela apontando a noite pinga
Uma camisola ensanguentada.
Vrsa 13/11/12
Agora que tens as tuas palavras
inúteis gravadas no espaço que rodeia
o teu quintal, ondulando nas cabeças dos vizinhos,
nas consciências impolutas dos animais
sentados nas esteiras da necessidade,
agora, dizia, os inimagináveis dias de antanho
emergirão como batólitos
de raiva rompendo os estratos superiores
estranhamente superficiais. Das entranhas
dessas palavras (ainda inúteis) soltar-se-ão estruturas
vazias como opérculos de peixes vadios
que vagueiam nas noites de marés
sussurradas. Nessas estruturas frágeis e silenciosas
penduras o casaco de sombra que cobre
o frio da noite, caminhas ao encontro
da nudez dos círculos de luz que rompem
os cálidos penedos da sensatez.
VRSA - out. 2012
(…) e continuava escavando,
escavando a água que lhe escorria do corpo,
do interior da carne devoluta.
Atravessou a profundidade do princípio
através de árvores e pássaros
que o cumprimentaram com tristeza
estranhando a ousadia do cavador
desaparecendo na hiante cratera,
revelando o dentro onde a luz
varre a caverna essencial
para sempre corrompida. Cá fora
amontoam-se entranhas putrefactas
e repugnantes, instalação tempestiva
abrigando o futuro sanguinolento e breve.
A negritude das aves que disputam os escombros
traduz a poesia que se desprende das vozes,
do corpo escalavrado. (…) e continuou escavando,
escavando o sangue que coagulava na ferida rasgada,
nos socalcos da escuridão que cediam à tristeza
dos citrinos. A lâmina dilacerante faísca
ao encontro dos sedimentos mais sólidos da paixão,
rasgando fraturas na indizível serenidade
dos rochedos fossilizados, desocultando
chagas cicatrizadas no antanho das palavras
ornamentais, esquecidas no interior das faces
labirínticas do corpo.
Argonauta no pus amniótico que envolve
a memória, entranhando-se num mundo
de vísceras sem retorno, esquece a procura
dos primórdios fundadores da complexidade,
dos dias felizes maternais, afagos hipnotizantes.
As forças faltam-lhe por vezes na profundidade
das sombras fazendo-o parar. Repousando
nos escombros flamejantes da viagem.
Os amigos recentes ficaram para trás e a claridade
da superfície é já um ténue fio acariciando
as paredes mornas da solidão.
Recomeças a perfuração dos estratos
mais longínquos com uma violência que desconhecias.
Voam fragmentos estranhos e incandescentes
sulcando a memória incompleta. Sentes uma
inusitada ereção perante as fêmeas expostas
que se te cravam na carne. Há mulheres saindo
das sombras que te saúdam com o sexo húmido,
desafiando os medos acumulados em quartos
sem portas nem janelas, em fragmentos inatingíveis,
arquipélagos no imenso plasma do prazer que te
destrói a caminhada. Uma mulher que fodeste
uma só vez num molhe de uma praia deserta
arrasta uma criança que te olha de soslaio.
Só ingerindo a indigesta carne de cabra velha
poderás comunicar com os espectros
que vão pelo rio em sentido inverso.
Em vão agitas os braços, tentando
tocar-lhes com as pontas dos dedos.
Ultrapassas a cintura do sexo e penetras
um sedimento de lágrimas rasgando a lama
escarlate que emerge da sombra espessa e fria.
Ouvem-se gritos de crianças ansiosas, o vento
cala-se como se a noite se tivesse apoderado
de tudo e não precisasses de continuar a escavar
o que já não entendes como teu. Das vísceras revoltas
e ferventes solta-se um berro de recém-nascido.
O teu caminho chegou ao fim e um gato saltou
para o berço que te acolhe. O choro para enquanto
o felino se enrosca no leito que é também o da tua mãe.
Resta-te, sem possibilidades de regressar aos teus pensamentos,
escalavrar os corpos dos outros.
O espelho não é tão aconchegante, mas revela cambiantes
externos que compensam o rumorejar das entranhas.
MG/VRSA
22/5/2012

Ontem, aquilo que te preocupava foi apagado
da memória e empacotado em livros discretos,
suportes de um tempo lavrado na cal das paredes
expostas ao cruel sonho da opressão, ao medo
que estilhaça a caminhada pelo pó onde
os pés rangem na noite espessa e sussurrada.
Ontem, os escombros que rejeitaste no novo dia,
ainda palpitantes e revoltos da edificação caótica
da véspera, esconderam para sempre as cicatrizes
que te vincavam o caminho silencioso, tatuagens
efémeras queimando a pele, incendiando
o caminho sombrio que o vento açoita.
Eis que de súbito, ontem ainda, se levantam
ondas alterosas arrastando os que ousam enfrentar
o desconhecido, que desenham caminhos utópicos
rasgando o apocalipse, os ciclos repetindo o tempo.
Esta repentina alteração na dança dos dados lançados
na planície apanha-te – nos princípios – desprevenido
e à deriva. Reaprendes a erguer-te da superfície instável
do devir, os olhos procuram outros olhos que te guiem
na imensidão do caos. Reaprendes a conhecer o que
importa na voluptuosa insolvência dos incautos.
Quando a correnteza das águas amaina, compreendes
que estás só, que os que te acompanhavam seguiram
outras veredas por entre os obstáculos salpicados
na imensidão do futuro. O tamanho dos dias que se estendem
diante de nós representa uma barreira na progressão, mas,
ao mesmo tempo, um desafio maior que te espera:
o curto espaço entre a vida e a morte onde
a cópula desoculta o caminho.
MG/VRSA 4/2012
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Quando se anda na rua, não tem problema. Retiras o macaco, rola-lo entre o polegar e o indicador e, quando já perdeu a humidade e não cola aos dedos, atira-lo, redondinho, para o chão. No automóvel, o processo é quase o mesmo. Só tens que abrir o vidro da janela e aventá-lo ao caminho. Não tem problema. As caretas que ofereces aos transeuntes enquanto pescas no estreito túnel não se distinguem das caras que se confundem nas vidas sem sentido.
O pior é quando as obstruções sólidas das cavidades nasais acontecem na cama. Na horizontalidade do sono ou nas convulsões da insónia e do sexo. Há já algum tempo que resolvi este problema. Dedo indicador revolvendo o habitat onde se criam os entes viscosos, unha em função de anzol retirando o inquietador, operação desumificadora com a sua rotação, já referida, entre o polegar e o indicador e … redondo, redondo, colocação do macaco extraído em cima da mesa-de-cabeceira. Ao lado dos livros incompletos, do relógio e dos anéis.
Quando o montante atinge quantidades incompatíveis como regular funcionamento de uma mesa-de-cabeceira, fora pela janela. Escusado será dizer que um monte de macacos se acumula do lado de fora da janela quase até ao parapeito. Parece uma obra plástica saída de um museu de arte contemporânea. E até fica bem no conjunto pimenteira-bastarda, pinheiro, buganvília, que assomam à janela. No entanto, não sei bem o que lhe faça. Ontem, o vizinho, o da barba azul, um homem estranho e educado, pospôs-se-me comprar o monte de macacos inertes. Rejeitei categoricamente. Vender algo que é meu e acumulei com tanta paciência e tempo, não me pareceu boa ideia. Mas passei o resto do dia e o que já passou do de hoje a meditar sobre as ideias do meu vizinho em relação ao destino para aquele monte de esterco. E, agora mesmo, alavancado pela febre da curiosidade que me é própria, decidi, sem pensar, vender-lhe o que me saiu do corpo e tanto tempo levou a edificar. Só assim poderei saber o destino que lhe está reservado.
M.G. 10/04/12

Não tem importância, nunca teve,
é uma gramática da pele, irrompe
sempre que as calmarias assentam
na reflexão contemporânea do olhar.
A importância das coisas é, ainda,
o panorama do silêncio para além das paredes,
conversa publicada no obrigatório confluir
das cerejas mordendo a própria língua.
Na tua luz a minha fala não tem
importância, filha da puta zurzindo
as ameixeiras que cada escritor ama.
Regressas à terra onde os gambuzinos te
inspiraram as primeiras, e únicas, palavras,
à terra que apenas existia debaixo
dos teus pés, à terra fragmentada
no imaginário inquieto das traseiras
do teu quarto. Porra! Eras um miúdo
distraído, cantarolaram as velhas
da aldeia atirando as orelhas para
o interior das almas fedendo a antanho.
A trilogia nauseabunda, extirpada
por arqueólogos assassinos que procuram
o mal oculto nos corpos, cega a vida virtuosa,
as pontas soltas dos devir: passado, presente e
futuro numa amálgama coberta de pó. O jogo
completa-se quando se juntam aos arqueólogos
assassinos companheiros vindos das profundezas
dos abismos dedilhando teclas de pianos “au menier”.
Foda-se, disseram em uníssono os escavadores de projetos
adiados: mineiros, autopsiadores, coveiros e poetas.
Escancararam portas para o profundo e iniciaram
uma digressão pelo mundo das sombras, questionando
o velho e o novo que se esvai em ninguém. Em
perguntas estéreis que ecoam nos complexos
jardins de carbono, viajando na infância precária.
Na comédia instrumental que percorre a noite
só os coveiros conseguem resultados tangíveis
e metamórficos: teorias da morte ou deriva das
paixões. A terra que volta a cobrir
o que confundiu a paisagem dos desafinados
caminhantes das sombras, xamanes da putrefação
divina, revela uma única verdade,
só uma, que amontoa escombros nos corpos
intumescidos. Só o poeta engole a última garfada:
o assassino da vida escassa, das asperezas da língua
silenciando o amargo estertor do sonho.
Não tem importância nenhuma, nunca teve.
Amém!
M.G. 10/04/12
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