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"Saímos já a noite se prepara para deixar a cena e a abóbada celeste resplandece estrelada. A chuva acompanhou a noite e com ela voltará. Outras vezes. Sempre. Sempre para nos aconselhar. Juntas ou separadas, para confortar a nostalgia. Bandos de gaivotas guincham no crepúsculo seguindo o rasto das traineiras que regressam da faina. Amanhecia com a luminosidade dos dias que procedem a chuva. Ainda havia luz no Texas. Penetramos na penumbra fosca da casa. Nat King Cole e a filha, Natalie, amparam o único casal que dança no centro da pista. Toda a luz lhes pertence. E a música. Unforgettable. Quase não se mexem. O homem, velho sem idade, sobrecasaca até aos joelhos, olhos cerrados, repousa os lábios, adivinham-se baços, num seio desnudo da companheira, jovem como o dia. (Rosa incandescente iluminado a noite.) Regresso ao amojo materno. Dançam como se o tempo se tivesse esgotado e esperassem outro combustível que o pusesse em marcha para continuar a vida de todos os dias. Desse vida à pesada engrenagem do devir. A realidade impositiva.
Vendo-nos no hall de entrada, um empregado sonolento explica-nos que espera o fim da dança para fechar a casa. O homem é cliente antigo e a cliente antigo nada se nega. Saímos surpreendidos com a claridade da madrugada. O empregado diligente presenteou-nos com duas cervejas. Caminhamos pela Ribeira das Naus e acabamos a noite, e as cervejas, no Cais das Colunas.
O Sol, erguendo-se na lezíria, incendeia o Mar da Palha. De ouro e bronze. Será a última vez que nos vemos. A distopia vencerá a eternidade. Para sempre restarão os sorrisos cúmplices varrendo a alegria de viver. Não haverá mais tempo para reencontrar o que é surpreendente sem causar espanto. O espanto nunca existiu. É apenas um rumorejar na noite dos tempos que contempla o cenário dos malditos aprendizes de ilusões. Agora, é tempo de recuperar os dias votados às aprendizagens inúteis. Deitar fora o que não marcou o corpo, sinais inscritos no que mais importava. Para isso, viver será o derradeiro desembarque na música celestial. Nas abóbadas do mal. No mundo regido pela embriaguez da tempestade. Colapso marcando o final do ciclo que nos trouxe até aqui. É já na eternidade do silêncio que caminhamos, costas com costas, quando os nossos passos se afastam. Se afastam de nós. Numa eternidade que é o reverso de toda a eternidade.
capa de Manuel Almeida e Sousa
Afinal a cerimónia é às 21:30 e não às 17 horas
Fernando Esteves Pinto nasceu em Cascais em 1961 e é co-fundador do "Sulscrito" - Círculo Literário do Algarve e co-coordenador do projecto Palavra Ibérica e da editora 4águas.
livros publicados:
- Na Escrita e no Rosto (poesia)
- Siete Planos Coreográficos (poesia)
- Ensaio Entre Portas (poesia)
- Conversas Terminais (romance)
- Sexo Entre Mentiras (romance)
- Privado (novela)
Na gaveta tem o romance que vai arrasar a literatura portuguesa: "Teatro Brutal". Não ficará pedra sobre pedra. Das ruínas fumegantes, outro mundo emergirá...
A noite caiu cálida e serena. A casa do Rui encheu-se de gentes que não se rende. Gente vinda de outro mundo que caminha para outro mundo, enquanto agita este mundo. As noites destas gentes rasgam caminhos sinuosos que traçam riscos de solidão nas vidas incompletas. Nada pode prever os ziguezagues apocalípticos, as longas rectas sem destino. As palavras são cruéis e imprevisíveis, mutilam e abrem brechas nas crostas ideológicas da multidão. Vergastam a pele dos que sentimos mais próximos. As mudanças indispõem os organismos e são a força vital da sobrevivência. A mudança é a vida e predispõe a morte.
Na noite cálida que lavrou o tempo, o cálice ergueu-se pingando o vinho e tilintou nas esperanças da recusa de eternidade. A velhice saiu à rua e gritou aos ouvintes incrédulos a impossibilidade de regressar a casa. À casa dos teus avós. À genealógica euforia do devir. O mar entranhou-se, sem estranhezas, na confusão dos espíritos perplexos e aspergiu gritos de aflição na vizinhança amortalhada: a reacção foi desproporcionada à acção. Gente, que ninguém soube de onde vinha, envolveu-se na contenda do cálice e das palavras. Abafaram-se ideias de lucidez feroz. Louca. Os amigos enervam-se quando nascem profetas fora de prazo. Profetas que conhecem os meandros das consciências estagnadas. Das consciências marcadas pela violação dos direitos adquiridos no super mercado da sabedoria empacotada.
A casa do Rui flutua na noite. Enquanto os argonautas se digladiam na planície repleta de sombras, o anfitrião serve pérolas em cascabulhos roubados à lama escabrosa das almas inquietas.
As calmarias surgem na madrugada quando a conversa se concentra num chão pejado de alfarrobas.
(PS: Não ligar à conversa mole deste vosso criado. As noites-da-casa-do-rui são monumentos rituais celebrados em honra de Baco)
(PS1:Este texto, que saiu de rompante à velha maneira surrealista, é dedicado ao Adão que tudo filma, compõe e edita e que nunca aparece)
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