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Sabes? Só hoje, tarde, demasiado tarde,
compreendi que quando as sombras se sobrepõem
se tornam mais densas, mais escuras, mais sombras.
Se soubesse disso antes, talvez não tivesse esperado
tanto tempo para te dizer o que não sei bem expressar
e, no entanto, sei tão bem sentir: a inquietude das sombras
que projetas em mim, a opacidade das trevas sobrepostas,
a espessura dessa ausência de claridade, faz de mim
nada, uma figura sem contornos, perdida num mundo
selvaticamente nu onde navego sem ver por
que mares sulco nessa matéria negra que depositas
sobre os meus passos outrora cautelosos.
Se a densa sombra das sombras, das sombras
sedimentadas nos corpos receando a morte,
se alevanta e espreitarmos para lá do que a sombra
cobre na luz que os meus sonhos criam e inventam
emitindo coágulos de sangue para romper as sombras,
o peso das sombras justapostas sobre o meu ser inacabado e breve,
invisível e negro como as noites sem luar e opaco
como a sensibilidade das sombras, o meu corpo
resplandece sob a minha pele.
Se abrisse uma porta deixando entrar a luz do fora rasgando
a sombra do dentro,
como se o interior não fosse mais um oco sem fim, um vazio
pesando sobre o meu peito, um lugar nenhures de um plasma denso e doce
repartindo as emoções dos nossos antepassados num recipiente
sem fundo em que as memórias subissem por capilaridade
até afogar as sombras que te ocultam o pensamento,
na voragem dos dias, colapso de tempo que irradia e seduz
o fogo oprimido e devoluto, venenoso e vital, reparador
dos sinais que a sombra esmaga: uma a uma, na planície
infinita, terreiro dos rufares insanos dos tambores
ecoando nas cristas de cobalto das montanhas ausentes.
O nó que prende a tua alma ao meu desolado coração
não deixará verter uma lágrima,
uma cintilação no olhar
sequer, uma palavra que se aproprie das divindades
que navegam nos territórios inclementes e cruéis da solidão.
Da saudade irrepetível. Nos tempos dos finais sem fim.
Sabes? Hoje, tarde, demasiado cedo, compreendi as impossibilidades
de te voltar a encontrar nos socalcos esmagados das tuas sombras.
Que são também as sombras dos outros.
(acabado) 14/4/2020 (tempos de peste), Cativa
Atiro os meus ossos aos cães E fico-me prisioneiro da carne, bamboleando Na brisa que sopra da noite enquanto ouço O triturar dos ossos nos maxilares dos animais Vadios, eco sonâmbulo nas vielas estreitas Onde os grafitos assomam da cal solta Das paredes. Inicio a travessia das trevas À procura de luz que me estruture a existência, Me ampare a memória fragilizada. Os cães rosnam Quando passa oscilante a carne dos seus ossos. A carne não exige caninos que trinchem o suporte Inútil da ardente voluptuosidade. O tempo cozerá Uma nova estrutura, uma nova solidez para o ser Esponjoso que se atravessa na ilusão da persistente Procura. Talvez os cães preferissem a carne desossada Que me transporta, a carne fedendo a desejo. Rasgar A carne parece-me, que não conheço o prazer De devorar a vida, mais apetecível do que esmagar ossos para chegar ao tutano oculto e morno. Há gente que só consome carne soldada no esqueleto Dos outros. Que se alimenta dos destroços atirados À rua, destroços que nunca conheceram O todo a que pertenceram. O frágil repugna Os que se alimentam dos desperdícios lancinantes Dos desalinhados. Nunca os veremos a apodrecer nos Espelhos que devolvem a sua imagem aos frios cristais de prata, as personagens que nunca fomos e que apascentam as memórias das criaturas que gemem nos subúrbios da paixão. Abandonados, nunca o devir lhes servirá de desculpa para justificar os desvios que empreendemos quando a solidão fulmina. Há até quem reconheça no bater das asas dos pássaros relâmpagos de dor, excrescências vazias corroendo os ossos devolutos. Os cães vadios que vagabundeiam nas vielas apertadas da cidade ladram aos exilados que se apresentam como heróis assustados, às endorfinas que exalam da pele sacralizada. Na ossatura fossilizada, os caninos rasgam sulcos antigos contaminando os que, como eu, perderam a interioridade palpável, o molde dos sentimentos instrumentais. Resta, restará sempre, o que a vaidade Semeia no olhar dos crentes. Vrsa 29-1-15
Procura sem a ânsia
de seres grande, procura sem cessar
o que não entendes.
O que não precisas. As sementes dos santos.
Levanta-te ao encontro da solidão honesta
e vã, desenha em ti a podridão do novo
como como se tudo emergisse
das ideias confusas da singularidade,
dos caminhos já trilhados
por outros, da cegueira obscena
e sôfrega de sangue virginal.
O que encontramos são murmúrios
só entendíveis a iniciados nas longas
procissões de vagabundos
à procura
das areias escaldantes, da nauseabunda e escarlate
mãe de todas as dores. As dores que apoquentam os mortos.
Murmúrios conspirativos renegando o passado
perdido atrás de paredes transparentes,
o oculto transgressor rompendo
o discurso básico dos profetas. Enigma
de antanho onde a memória
emerge dos pés mergulhados em cerimónias
do esquecimento, escaldantes, brasas rasgando as vestes
dos risos alarves, xamânicos, onde os rostos
de cadáveres orgulhosos são possuídos
pelo medo convulso das tardes. Procura os que te
arrastam até ao fim das sombras do desejo.
Monte Gordo, 3-11-2016
se o ódio se adianta
e te prescreve a dor,
doma-o e sai para a rua,
grita como se o labirinto
que as flores desenham
no torso da nuvens
se rasgasse
em cicatrizes invisíveis
ao sentido dos duendes imorais,
grita até sentires
o eco das paredes
te atirarem no precipício
da carne a latejar de desejo
se o ódio persistir, enraivecido,
regendo os medos e as sombras,
sai do teu corpo e abandona
o odor crepuscular,
o rumor brando das entranhas,
deixa-te levar por entre as casas
do lugar, por entre a claridade
que atravessa os dias
tatuados nos sonhos incandescentes
do profeta desconhecido
estranhos tempos estão encantando
o coração das cidades, as guelras dos peixes
emergindo das redes sociais,
saudando o ódio que nos enforma
e conduz, as esculturas de lixo
rasgando a pele de animais degolados
ao entardecer, sangrando palavras
Em silicon valley os colaboradores de unicórnios dormem em autocaravanas à porta das startups para não perder tempo entre a casa e o trabalho, tomam pastilhas e tabletes para não gastar o tempo com refeições alienantes, trabalham, até, de fraldas para dispensar a frequência das insípidas casas de banho. Em silicon valley os teclados de computador têm triliões de espécies de vírus, bactérias e ácaros e os dedos dos criadores de sonhos e crenças para incréus rendilham figuras com os neurónios desassossegados, não passam de viajantes sem destino e sem memórias. Em silicon valley o inglês é a língua que fenece nos lábios fechados, ali se ergue, na rede que globaliza, a nova e indestrutível torre de babel, ali convergem os infelizes que inventam o novo mundo e programam o homem novo. Em silicon valley os logaritmos contagiosos rastejam nas redes sociais. O homem novo vomitado sem revolução, o homem digitalus, o homem tornado robô e desligado da natureza perversa em que o tigre devora a ensanguentada gazela. Em silicon valley os homens e as mulheres não fodem a não ser nas férias, que são raras e só quando a depressão é grande e a felicidade espreita. Masturbam-se com as mãos que se perdem nas teclas indigestas das máquinas e nos ecrãs tácteis. Em silicon valley, e no resto do vale, que é o resto do mundo, o amor foi esquecido e anda pelos abismos das noites sem néon à procura da humanidade cruel, continuando a errar e a apavorar o homem novo. Para que tudo seja perfeito e que as consciências atinjam o paraíso é preciso conquistar o sono: o capitalismo só será a vida, a vida inteira, quando a humanidade permanecer em eterna vigília. Em silicon valley os vermes, cookies divinos, governam o mundo a partir de intrusos que passeiam na tua cabeça. Não deixes acabar a noite fria.
Hoje, o dia será tão grande que ainda não nasci.
Foi hoje mesmo que Timoteo introduziu a 12.ª corda da lira
E o menino Mozart, depois de ter tocado cravo de olhos vendados para a corte aparvalhada, pediu Maria Antonieta, futura rainha
de França, em casamento (quando voltou a Paris já homem, ninguém lhe ligou peva).
Possivelmente o dia nem terminará enquanto não desceres até ao teu mundo interior,
À grande sombra da solidão dos outros. Poderá vir a ser o dia em que utilizarei
a inutilidade como meio de transporte até ti. Chegar a ti sem chegar a lado algum.
Fui lendo e interpretando a linguagem das nuvens refletidas no fundo do mar para passar o tempo que restava no dia dos dias. Sou o homem fantasma e viajo de mota
Pela estrada do pensamento pré-cartesiano, onde tudo pode existir sem existir e as personagens mais reais são as que nunca passaram de sombras ténues duma luz irreal.
Só a mota, sem mim, parece atravessar o emaranhado de vias, viadutos e túneis que M. C. Escher gravou a fogo nas minhas mãos. Sou o homem fantasma que vive nas páginas de Ovídio. Argonauta a caminho da Geórgia na procura do manto sedoso que nos há de trazer a riqueza inesgotável. O homem que previu o que aconteceria quando Einstein pusesse
a potência no C da fórmula das fórmulas: bocejou e foi dar um beijo na mulher, que sorriu como a Mona sorriu pela primeira vez a Leonardo.
O dia, como nos esquecemos tão facilmente das coisas desproporcionadas, avançou bruscamente (só por isso o percecionámos) anunciando o meu nascimento ao final da tarde. Quando nasci, já Nietzsche vivia na minha cabeça, depois de ter conhecido o cavalo de Turim e de ter adormecido na véspera do dia que nos transporta até hoje.
O chicote sibilino do cocheiro de VERDI lambeu a calote visível, the other side of the moon, do meu cérebro e fez-me navegante no dia que não tem fim.
Há água, outras vezes fogo, muitas vezes fogo, na frente de um pente saltando à corda no quintal
de um parente de província.
Uma máquina de café ampara uma faca e uma colher…
Tiro um café e a faca reage
ameaçadoramente fazendo-me a barba à escovinha.
Não sentes o odor a pintelho que sopra do 1.º andar?
Tomo o café… a sombra das cigarras
envolve o pescoço das liceais leitosas e púberes. Gostosas!
Moças sem rosto, de mamas sentadas na maldição
da poeira incandescente.
O problema não é com os sacanas, com os que saltam
de costas para os precipícios da fé, é-o com
Os que acreditam que são tão bons quanto
Os que dançam nus na tempestade, os que roçam
O vento e naufragam nas noites de sangue.
O café desaparece, frio, no quintal do meu tio-avô
E as malabáricas proezas do pente transferem-se
Para o cabelo rebelde da maresia que emerge
Das sombras das cantoras da tarde.
De barba aparada e penteado cruel, saio para
A vida que me espera no comboio sem fim.
Salgo de casa con un abrigo negro comprado en zara, un abrigo de escritor barato y con muchos bolsillos, y paseo por la calle silbando knockin on heaven's door de dylan. Voy a un festival literario. El abrigo negro me está largo, pero me da un aire de pedante, y así me voy deslizando por la calzada gastada de la vieja calle. Piso mierda de perro, y tan sólo yo avanzo en la oscuridad de los días sin regreso. Hotel pagado y comida en un restaurante de dudoso gusto, abrazos y besos en la pajarera circundante, selfies para siempre con camaradas del arte de las palabras y, con suerte, con alguna estrella del firmamento distante. Sonrío. ¡El abrigo me sienta tan bien! Sonrío al que pasa y el que pasa piensa que es un loco el que pasa.
- Con un abrigo de esos…
Espero el autobús 16 al final de la calle. Voy desde Venda Nova y el 16 sale de allí mismo por Puertas de Benfica. ¡Joder!No me hablen del Benfica que hasta me mareo. De fútbol no sé nada, pero sufro por esta mierda de equipo que sólo me da disgustos y arritmias. Aquí voy, feliz como una piedra lanzada al aire que cae en la cabeza de algún, que se joda mi amiga Ladislaia que no soporta que escriba de algún; quiero decir de algún niño. Mi abrigo ocupa dos asientos en el autobús: el mío y el que debía ser para la señora que va agarrada a la barra vertical del coche. La barra es de metal plata incandescente y me hace recordar, ay la puta memoria que siempre me arrastra a lugares intangibles y escurridizos, cuando fui con otros tres poetas a una casa de putas con una barra en medio del salón. Estábamos tan bebidos que hasta yo bailé en la barra. Y mire, ahora que nadie nos oye, hasta tenía garbo. Lo peor fue cuando una chica, con mucho encanto, me metió la mano en un lugar que hace que me ruborice sólo de pensarlo. Los tres poetas gozando con la escenita y yo encendiendo la casa con mis vergüenzas.
Y, joder, aquí voy en el autobús 16 con mi abrigo de escritor, que en honor a la verdad, me está un poquito largo. Me miro en un escaparate y parezco mismamente lo que soy: un idiota vestido de escritor camino de una fiesta de idiotas vestidos de escritores. Me bajo en una parada cualquiera. Knock, knock on the heaven's door. El abrigo aletea en la brisa y me lo ajusto. Como es largo deja entrar el frío que del mar se levanta.
tradução, gentilmente ofertada, de Pedro Sanz.
Tenho mil anos, nasci em 1018.
Debutava o segundo milénio e ninguém tinha morrido. Ainda.
Era março do ano 19 do século XI. Tudo o que viria a seguir seria a repetição
Do que tinha sido aquele ano. Sou velho e quero a imensidão do infinito a gerar
Rios de esperança onde há dor e todos querem os sacrifícios para serem jovens e
Terminarem cedo os dias da incompleta solidão. Não somos o que éramos quando
O tempo vinha de mansinho trazer finitude aos sonhos, finitude aos amigos que deixáramos
na estrada. Nunca há tempo para estar com os outros nas sombras das árvores com pássaros.
Os pássaros voam quando não estamos sós, atravessam o coração de quem é feio e não
Nasceu para ser profeta. Todos os pássaros têm visões do inferno quando sonham alto.
Todos os amigos te relembram constantemente que as primeiras chuvas de verão são
Vermes sugando o teu sangue nas correntezas do devir. Tenho mais de mil anos
e não sofro de artrites nas mãos. Tenho mais de dez séculos e não corro atrás da passarada dos vizinhos. Na terra em que nasci, os primeiros figos eram para os pardais. Quando a criançada lá chegava não encontrava senão grainhas das vidas passadas, das vidas mais antigas que a minha, das vidas com mais de mil anos. Mais do que eu mas mais novos que eu. Tão novos que, sendo eu novo, até parecia velho. Velho de um milhão de anos. De tempos antes de cristo, antes mesmo de buda e de todos os homens que quiseram ser como eu: apenas pessoas com mil anos. Matusalém podia ter sido meu amigo se os outro não olhassem para ele como se de um velho se tratasse. E, no entanto, era ligeiramente mais novo que eu.
Quantos suspiros tem um homem que atirar na tempestade para que as suas raízes se corrompam antes de morrer? Antes mesmo de deixar os abutres enlutados caírem da escarpa do esquecimento. Tão profunda como o universo que cavalga os titãs da raiva e do desespero.
Não, amanhã não será o dia da despedida. Será, apenas, tarde. E, por isso, levantar-me-ei, como sempre, cedo.
Cativa, 7 de março de 2018, 21:46
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