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Entre 1945 e 1948 havia todos os Domingos sessões de cinema em Vila Nova de Cacela.
Estas sessões realizavam-se numa sala do rés-do-chão duma antiga fábrica de moagem desactivada e que foi adoptada para o efeito.
Durante parte da semana eram afixados, junto da loja do João Trindade, os “quadros” com imagens do filme e também ali se podiam marcar lugar e comprar bilhetes. Também todos os Domingos à tarde era posta a funcionar uma aparelhagem sonora, através da qual se publicitava o filme a exibir e se emitia música, destacando-se um célebre swing ” que, passados mais de 50 anos, ainda é transmitido com frequência por diversas estações de rádio.
Cerca de meia hora antes do início das sessões começava, no próprio cinema, a venda dos bilhetes sobrantes e a admissão dos espectadores. Havia duas categorias de bilhetes, os mais baratos eram os da parte da frente e os mais caros, na parte de trás.
Nos lugares mais caros instalavam-se as elites de Cacela, constituídas pela famílias Antunes, Cristos, Dragos , Rosas, Tamissas , Trindades e Tengarrinhas . Nos restantes lugares ficavam as camadas populares,
Quando os filmes eram portugueses também costumava assistir o padre Brito, acompanhado da sua sobrinha. Este padre era o dono da fábrica de moagem e foi ele que a mandou adaptar a cinema e era um dos seus sobrinhos que fazia a projecção dos filmes.
Ele não tinha paróquia e por vezes lamentava-se porque o padre Terramoto, da paróquia de Cacela, não lhe dispensava nenhuma missa para ele assim ganhar alguns escudos.
A sua assistência aos filmes portugueses, acompanhado da sobrinha, devia-se ao facto de ela, apesar de jovem e aparentemente perfeita, ser completamente invisual. Assim, embora não visse as imagens, ouvia a linguagem dos artistas.
Nesse tempo predominavam os filmes americanos de guerra, de amor e de cowboys. Os astros estrangeiros mais apreciados eram Clark Gable , Charles Chaplin , Errol Flynn , Humphrey Bogart , Spencer Tracy e Trone Power ; as estrelas estrangeiras mais queridas eram Bette Davis, Deborah Keer, Ingrid Bergman, Lauren Bacal, Mauren D`Hora, Olívia de Havyland e Vivien Leyg.
Nos artistas portugueses destacavam-se Beatriz Costa, Hermínia Silva, Maria Matos, Amália Rodrigues, Milu, António Silva, João Vilaret, Vasco Santana e Vergílio Teixeira.
Entre os melhores realizadores estrangeiros contavam-se Antonioni, Edmundo Lewis, Jonh Huston e Michael Curtis e entre os portugueses António Lopes Ribeiro e Leitão de Barros.
Nessa altura Cacela não era abastecida de energia eléctrica e a iluminação pública era feita por candeeiros a petróleo. Para fazer cinema era necessário um gerador que, accionado por um pequeno motor a gasolina, fornecia a electricidade para iluminar a sala e para fazer funcionar a máquina de projecção.
Durante as sessões notava-se sempre o barulho de assistentes, que liam as legendas para companheiros analfabetos.
Os filmes de então eram muito recatados no aspecto moral, por isso ser prática a nível mundial e também devido à férrea censura a que o governo português os submetia. As estrelas não usavam saias acima do joelho e tanto os vestidos como a blusas eram de manga ou meia-manga, só os decotes é que por vezes eram generosos, mostrando uma pequena parte dos seios. Nunca os artistas, quer femininos, quer masculinos se despiam para fazer amor. Mesmo em cenas de praia os fatos de banho para homem eram sempre inteiros e com alças e os das senhoras semelhantes, mas de corte direito em baixo, tapando inteiramente as ancas. As cenas de amor não iam além de apertos de mão, abraços e beijos fugazes e simples. Para se chegar aos beijos havia uma encenação prévia, geralmente acompanhada e música, que preparava a assistência para o evento. Quando a cena do beijo demorava, alguns espectadores mais atrevidos gritavam. Atira-te a ela ou frases semelhantes. Quando os beijos se concretizavam havia sussurros e assobios de aprovação da parte de alguns assistentes.
Por vezes a sessão era interrompida porque a fita se partia. Após este acontecimento havia protestos dos que afirmavam que, ao fazer a colagem, tinham encurtado mais do que o necessário o tamanho da fita.
Em 1946 foram utilizados os meios publicitários do cinema, para anunciar uma sessão inteiramente preenchida com a actuação de um ilusionista.
Nessa noite o tempo estava chuvoso, mas mesmo assim a sala esgotou.
O ilusionista intitulava-se Conde de Aguillar e apareceu no palco de chapéu alto e vestido de casaca preta, calças de fantasia, camisa branca e papilon; a sua ajudante envergava um vestido de cetim vermelho com lantejoulas. O seu repertório era vasto e, com habilidade notável, o artista, com a colaboração da ajudante, fazia desaparecer vários objectos, que de seguida fazia aparecer com a sua magia.
A assistência seguia com interesse a sua actuação, quando, para surpresa de todos, o Conde Aguillar interrompeu o seu trabalho e interpelou um assistente, que estava no meio da plateia com um guarda-chuva aberto. O artista perguntou-lhe qual o motivo de tão estranho procedimento, tendo aquele dito que o fazia porque chovia no local onde se sentava. Face a esta afirmação o prestidigitador falou para a assistência dizendo que tinha trabalhado em Bruxelas, Londres, Lisboa, Madrid, Roma e muitas outras cidades e era a primeira vez que via um espectador com um guarda-chuva aberto. Depois pediu-lhe para o fechar que faria um golpe de magia para a chuva parar. O visado obedeceu e o espectáculo prosseguiu o seu curso e terminou com o truque número um do seu repertório que consistia em fazer desaparecer uma pequena gaiola de arame com um canário.
O espectador atingido pela chuva era o Dr. Campos Palermo, proprietário da farmácia local e não sei se depois de fechar o guarda-chuva ainda apanhou alguns pingos, ou se mudou de lugar. Só sei que assistiu ao espectáculo até ao fim sem se queixar.
Cerca de 1950, o padre Brito vendeu o cinema e os novos proprietários continuaram com os mesmos espectáculos, mas, passados alguns anos, não resistiram à concorrência da televisão e o cinema fechou as suas portas para sempre.
Em, Memórias Escritas, de Fernando Gil Cardeira.
Como não será difícil de perceber este homem é o meu pai. Como também será fácil de perceber, este foi o homem que mais amei na minha vida (os meus filhos, que eu amo tanto quanto o amo a ele, são ainda crianças). Quando ele nos "deixou" eu passei a transportar a sua alma e passámos a ser um só no mesmo corpo. É bom estar sempre com ele e as parecenças físicas entre ambos ( a acentuar-se com a idade) fazem-me sentir que sou ele nunca deixando de ser eu.
Como a inspiração tem andado arredia vou começar a partilhar convosco algumas das extraordinárias histórias que o meu pai deixou para todos e que estão recolhidas no livro "Memórias Escritas" que relatam cruzamentos de vidas que se foram enredando, fundindo e chocando, por meados do século XX nas velhas terras de Cacela, Conceição, Cabanas, Tavira e outras.
Hoje deixo-vos uma pequena biografia com os defeitos que têm testemunhos intensamente apaixonados. Retirem o excesso de ...
Nasceu na povoação de Cabanas de Tavira em 1926, à beira da ria. Ainda criança mudou-se para o barrocal da freguesia de Conceição de Tavira onde se fez homem. Terceiro filho de uma família de agricultores/rendeiros não segue a vida dura dos trabalhos do campo devido a uma poliomielite contraída nos primeiros anos de vida, que lhe afectará significativamente uma perna até ao fim da vida.
Concluída brilhantemente a instrução primária, e não tendo a família condições económicas para lhe proporcionar a continuação dos estudos, inicia-se, nos primórdios dos anos 40, como aprendiz de alfaiate em Tavira. Mais tarde estabelece-se por conta própria na Venda Nova, em Vila Nova de Cacela, mudando-se depois para Lisboa para trabalhar no mesmo ofício.
Na grande cidade toma contacto com as lutas operárias contra o regime fascista e conhece a brutalidade da máquina repressiva do Estado Novo. Jovem idealista, imbuído do espírito de liberdade e justiça, abraça as causas da oposição ao regime e os valores do socialismo democrático.
Volta ao Algarve e instala-se como comerciante na povoação de Conceição de Tavira, na sua rua principal, a própria estrada nacional 125. Primeiro como vendedor de rádios e depois como comerciante de fazendas e miudezas associadas. Percorre ainda uma vez por semana, num carro de mula (por acaso puxado por um macho), algumas povoações vizinhas vendendo os seus artigos. Casa com Maria Rita da Conceição Baptista e tem dois filhos varões.
Em Conceição, local privilegiado, encruzilhada de caminhos e vidas, observa, participa, interessa-se, e discute as mudanças na sua região, no país e no mundo. Continua a sua luta contra o regime fascista organizando a participação da oposição local nas eleições, ajudando gente perseguida a passar para Espanha, distribuindo livros clandestinos, intervindo em comícios, ajudando camaradas presos, etc , etc . Será por isso muitas vezes incomodado e intimidado pela polícia política PIDE/DGS. Não desiste porém da sua luta pela democracia.
É durante décadas correspondente do jornal Diário Popular onde escreve regularmente artigos sobre o Sotavento Algarvio. A par disto vai escrevendo e anotando por tudo o que sejam papéis apontamentos sobre a vida e a história das gentes locais.
A Revolução de 25 de Abril de 1974 enche-o de alegria e empenha-se entusiasmado na implementação do regime democrático. Nesses tempos conturbados é presidente da Junta de Freguesia de Conceição de Tavira e durante anos deputado na Assembleia Municipal de Tavira.
O bichinho da escrita e da investigação etno-histórica vai-se tornado cada vez mais forte em detrimento da actividade política e é nesta área que investe os últimos anos da sua vida. Participa em congressos, em palestras, em programas de rádio, escreve compulsivamente para jornais, participa em livros colectivos, etc , etc . Chega mesmo, depois de reformado, a montar um escritório aberto para a rua onde recebe os amigos e outras pessoas para conversar durante o dia. À noite dedica-se à escrita.
Morre no dia 29 de Janeiro de 1999 de complicações cardio-respiratórias com tanto ainda por fazer…
Postumamente é editado pela família o livro “Memórias Escritas” que retrata vidas simples e extraordinárias, que nos transportam a um mundo antigo que se esvai mas que nos falam de esperança e lançam sementes no futuro complexo que nos espera. São uma pequena amostra do seu labor. Muito mais há para publicar. Como o poeta, assim se foi da morte libertando…
Ontem fui a um funeral. Quando era novo não ia a funerais. Toda a gente que morria me era distante e, mesmo os falecidos da minha aldeia, vagamente conhecidos. Lembro-me de só ter ido aos funerais dos meus avós e de um amigo colega de turma do quinto ano (quinto antigo). Aliás minto! Fui, como todos os rapazolas da aldeia, a alguns funerais de soldados mortos na Guerra Colonial. Nem os conhecíamos. Só lá aparecíamos para ver as salvas de honra (?) em memória dos, por certo pensávamos nós, heróicos lutadores e para colhermos as cápsulas que saltavam das G3, que depois utilizávamos nas nossas guerra particulares. Ainda hoje estou a ver os caixões, devidamente selados, ladeados por garbosos soldados que, metralhadoras apontadas ao ar, disparavam em honra dos
“ mártires da pátria” enquanto as cápsulas das balas(?) saltavam em todas as direcções.
Depois, à medida que fui envelhecendo e entrando naquela que apelidam de “meia idade”, comecei a reparar que os falecidos cada vez me eram mais próximos e mais queridos. Comecei a “acompanhar até à última morada” alguns. Como acompanhava a minha mãe nestes pequenos cortejos, a conversa, o caminhar conjunto e a companhia, qual saliva canina de Pavlov, começou a ronronar-me docemente no cérebro. O encontro com velhos amigos que não via há muito e até umas cervejolas que bebíamos no final do ritual, também era gratificante. E cá estou eu um regular frequentador de funerais. Não tanto como o Presidente da Câmara e da Freguesia, ou como a maior parte dos habitantes das aldeias da zona, mas não falhando um cortejo em que um amigo ou pessoa que me toque o coração, seja o “corpo”.
Assim foi ontem. O Francisco era um velho pescador que, não obstante a diferença de idades (20 anos) sempre tratei por tu. Desde menino que o fazia sem a menor exitação. O Francisco morreu anteontem. De cancro galopante. Felizmente, que esta ceifeira costuma alongar o sofrimento até aos píncaros da humilhação corpórea. Para ele e para todos, que eram todos, os que tinham a honra e o orgulho de o ter como amigo. Nunca casara e vivia com uma irmã também solteirona. De um humor corrosivo, quando deixava os amigos, depois de umas noites de copos, dizia que tinha que ir pois o marido estava à espera. O marido era a irmã, está bem claro de ver. Homem do mar, com profundas rugas cavadas na face e a cor dos homens das ondas, era muitas vezes escolhido como modelo de pintores que vagabundeavam nas margens da Ria Formosa. As suas histórias, quase sempre as mesmas, eram infindáveis. Nasceu numa casa junto às águas e na mesma deixou de respirar. Quando, por velhice e crise das pescas, se tornou um “mestre de terra”, passava a maior parte dos seus longos dias sentado na marginal de Cabanas olhando os aspectos dos tempos: dos ventos e do mar. Adivinhava os “Levantes” e quando acalmariam as investidas irregulares do “Norte”. Adorava conversar e mesmo com o seu humor difícil, não se lhe conheciam inimigos.
Ontem, quando subia a íngreme ladeira que nos leva da igreja ao cemitério ( a minha mãe desta vez não aguentou toda a subida, os 40 graus à sombra não aconselhavam brincadeiras), ia ouvindo as suas histórias sobre os homens do mar, sobre os barcos, a pesca e o tempo. Cá atrás no pelotão ia revendo os homens e mulheres que comigo subiam a ladeira. Conhecia-os a todos. Talvez não me lembrasse já dos nomes de muitos. Uns que tinham andado na escola comigo, outros com quem tinha jogado à bola, com outros tinha calcorreado os bailes da vizinhança, com algumas tinha namoriscado. Dos mais velhos tinha aprendido a ir vivendo, com as suas histórias e conselhos. Vi também que os pescadores, a maioria dos acompanhantes, já não usam as conhecidas camisas aos quadros. Será que é por ser Verão e estas serem de flanela? Reparei também, e pude compará-lo com os não pescadores, que não havia pescadores gordos. Todos secos e rugosos. O padre, velhinho e doente, também era um meu velho conhecido. Foi o primeiro a ter televisão na aldeia e onde se juntava todo o povo em ocasiões especiais tipo Festival da Canção. Foi até meu professor de História algures no tempo. Todos a evidenciar o fluir do tempo. Menos cabelo, mais curvados, mais ornamentados de óculos, menos dentes e os problemas de saúde de pobres e velhos. É sempre uma alegria ver o Rui, meu ídolo, que defendia as balizas da terra ainda aos 40 e muitos, com o cabelo todo branco e com o aspecto de um velhinho simpático, ou, ainda no futebol, o Juanico, dos grandes defesas centrais de Tavira (com quem ainda tive a felicidade de jogar) a arrastar-se encosta acima para levar um amigo até ao fim. Ao fim do bio, não do ser. Esse resistirá enquanto os que o seguem cá andarem. O Zé Armindo, o maior armador aos pássaros do Universo, com uns óculos fundo de garrafa que não lhe permitem distinguir uma cegonha de uma lambreta. E para terminar a olhadela pelos amigos de sempre, deixem-me dizer-vos que ali vem o mestre Mário, pai do meu amigo Mário. É uma sombra do homem alegre que sempre foi. Arrastando-se com dificuldade à entrada do cemitério, faz-me vir, finalmente as lágrimas aos olhos. Quantas gargalhadas em conjunto, as pescarias, as petiscadas… A velhice é terrível e só se aproveitam a beleza dos rostos e as recordações de outrora. Era bom que me convencesse que era de outra forma porque caminho para lá. Mas não tenho ilusões este fim não é como no filmes americanos. Só nos resta o acompanhamento dos amigos. Na vida a e na morte.
Esta é a minha gente. Eu pertenço a este mundo onde cresci e aprendi tudo o que sei. O Francisco continua a ser um dos meus. Do nossos!
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