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A propósito, conheces a destreza dos sinais
do vento, a dissecação de rumores subindo
pelo corpo ao murmúrio dos cabelos. São
desenhos que alimentam o olhar fugidio pela
água parada, a procura de pequenos animais
ancorados numa distância irremediável. Em vão
segregas outros rumos inclinados, pormenores
de infância vaticinam a indolência das palavras
onde escarras os dias. Surge uma casa
ou outra casa onde te convidam ao aconchego
de trocares os atalhos da pele. Saberás,
mesmo no escuro, ler um corpo palmo a palmo,
onde descobres um coração pernoitando só,
ao leres devagar a humidade muita pela
casa acesa.
Acordas aí da modorra de pequenos cristais de
solidão, sabes que é inverno e caminharás
para dentro e para fora da indizível língua
de fogo para repousares no vértice da água.
O cavalo acende-se por si
quando uma nêspera que cai apresenta
um pássaro comedoiro.
Quando o animal hipantropo não perfuma
os recantos inacessíveis eis um vento azul
que pernoita os sulcos quase verdes
da fome e da sombra.
Mesmo quando se não acende
o animal existe!
Risca a ressaca dos muros com mãos de relâmpago
e troveja ainda no crepúsculo dos galos...
Às vezes sobra a noite quando
uma rusga de silêncios
cai apagada
sobre a fuligem do cavalo.
O cavalo acende-se por si
perante o não sol.
Mesmo quando a bruma deambula
de rosto em rosto!...
Digo o fim da rota
remota
enquanto se não reinicia.
Respiro veloz a voz que percorre
o rosto da vela inacabada.
Rente ao fulgurante vento
a esconsa rua
o corpo sentado à beira-mar.
Não vejo os barcos. São mil.
Enquanto nómadas no deserto do mar
sei
da lua não
mas os caminhos...
A parede do gesto repete-se.
Digo o fim repetido.
ELEGIA DAS BOAS MANEIRAS
Obrigado obrigadíssimo obrigadinho obrigadão
é assim esta canção
Obrigadão obrigado obrigadíssimo obrigadinho
é assim tanto carinho
Obrigadinho obrigadão obrigado obrigadíssimo
é assim o vil ofício
Obrigadíssimo obrigadinho obrigadão e obrigado
já me sinto deslocado
Sei que sou por vezes inconsequente
porque não entendo
a beleza
da violência física...
tenho um grilo em casa
um charro no bolso
alguém no coração
um polícia em cada desgraça...
sou da mulher
o cigano de feira em feira
da mulher...
será a ideia de deus mais útil
do que outra ideia qualquer?...
quase tudo faremos por uma sanduíche
d eternidade...
MONÓLOGO
Criação:
vivem pelas arqueologias do silêncio
reunidos durante as cálidas insinuações
do fogo sob a pedra
Orgasmo:
palavras marmóreas aéreas descem
à fixidez do vermelho
Solidão:
a solidão transporta o rosto
para a penumbra dos esgotos
única musiqueta de todas as maneiras
intransponível
faca
aparecem na babugem os peixes mortos
até isso te vai parar
às tuas mãos sózinhas
Morte:
sibilina modorra desprende a língua do fruto
na mutação das chuvas o rio engorda
um objecto cortante arde-te frio nos dedos
sei a pulsação do sangue
digo logo para mim
essa nuvem
rebente profusa em teu pobre peito
( de Rui Dias Simão )
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