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As dores das árvores

por vítor, em 03.06.24

 



Se soubéssemos entender os sinais do sofrimento das árvores, se lhe entendêssemos as dores, poderíamos também regressar sem receios às florestas da infância. Se os pássaros que as habitam alterassem o canto quando a dor lhes corroesse a seiva, e lhes esmagasse as folhas e os ramos, se o vento vergasse os seus pináculos como se os dias fossem diferentes doutros dias e o outono roubasse a roupagem de diversa e interna teatralidade, veríamos eternos, como a lava dos vulcões, o triste pulsar que releva do amor das criaturas e das viagens sem crepúsculo, rasga a crosta estéril do tempo.

Das figueiras só crescem folhas vastas para cobrir de sombra os figos.

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publicado às 17:39

Da morte

por vítor, em 03.06.24

Pode ser uma imagem de gato

Ao final da tarde, a nossa gata Betty, morreu tranquilamente (eutanasiada) nas minhas mãos, sob uma cascata de lágrimas e o cuidado irrepreensível do Dr. Juan Díaz.
Depois de mais de uma década e meia de felicidade, numa quinta inteira só para si e numa casa que a adorava e mimava sem limites, deixa um imenso vazio e uma dor imensa na família.
 
 
 
 
 
 

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publicado às 17:37

Apresentação de Escrituras

por vítor, em 03.06.24

Pode ser uma imagem de 2 pessoas e texto

Meus amigos, como podeis ver, vou apresentar o meu mais recente livro. É um acontecimento raro. Por mim, não apresentaria mais livros com o gasto formato “institucional”: um apresentador, dois ou três diseures, o editor, o autor, ele próprio, um número musical e uma plateia onde, na primeira fila, se acotovelam uns familiares babados, nas filas seguintes uns amigos, meio contrariados, e, finalmente, nas últimas filas, talvez os mais interessados, e interessantes, uns conhecidos vagos. A fórmula rotineira vem-se acomodando aos escritores e continua a reproduzir-se pelo país fora, desde o mais recôndito povoado, à mais densa metrópole. Grandes e pequenos artistas, apresentam-se, e revelam as suas obras, como se de rituais ancestrais se tratassem e não houvesse outra forma de revelar as suas criaturas ao mundo. Bem sei que esta é ainda a melhor maneira de vender livros e, para quem aprecia, estar mais próximo dos seus leitores. Mas, caramba, Mário Cesariny apresentou um livro num baile, Fernando Ribeiro de Mello, na noite de 15 de Dezembro de 1971, reuniu em sua casa uma chusma de jornalistas e figuras dos meios culturais lisboetas, tendo-os recebido dentro de uma ampla banheira circular, coadjuvado por uns sujeitos vestidos de diabo e um par de travestis em trajes menores em cujos corpos tinham sido desenhados os títulos de quatro livros a apresentar. Nos dias de hoje, com respeitinho e disciplina, não fazemos outra coisa que não satisfazer as editoras e os poderes instituídos: tudo o que vai para além da norma e do expectável é censurado, e autocensurado, e reproduzimos modelos insonsos e já testados.
Como vos dizia, a raridade do ritual, deste evento sem interesse de maior, deve-se ao denso desiderato contratual. E lá estarei, depois de anos sem apresentar um livro, para vos dar a conhecer a minha mais recente cria. Lá estará, também o editor e tradutor, o livro é bilingue, para castelhano da obra. Poderia ter convidado uma estrela do mundo literário para apresentar a criatura, uns amigos do teatro para ler textos e, outros, músicos para tocar umas peças. Poderia ter enviado convites a autoridades várias, públicas e privadas, a amigos e conhecidos. Talvez tivesse casa cheia. E vendesse muitos livros! Mas sentir-me-ia um bully.
Será uma conversa com quem quiser aparecer. Falaremos de livros e escritores, de edição e distribuição. De leitores e nichos de leitura. Abordaremos a falácia de que se vestem e travestem uma grande parte dos livros e dos autores. Da inutilidade da criação e da ausência do autor nos abismos da criação artística. Da vaidade como motor da produção do artista. Ou da importância do feudalismo literário na proteção e promoção dos seus subordinados. E do que mais entenderem conversar. E do silêncio que envolve as palavras
Garanto que lerei alguns textos, qual bardo gaulês. Se também o quiserem fazer, agradeço.

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publicado às 17:35

A Viagem e a Criação

por vítor, em 03.06.24

 



Sempre senti o apelo da viagem,

E, no entanto, apesar das voltas que fui dando, umas sensatas, outras ao arrepio de quaisquer lógicas ou entendimentos, nunca saí deste lugar morno e acolhedor. Lugar centrado em mim e que de mim faz mundo. Lugar peia, lugar gravítico, para toda a vida. Sim, a verdade, se é que podemos falar assim, e sabendo da sua viscosidade, e das suas múltiplas máscaras com que nos tenta e compra, é que todos seremos esquecidos. Mesmo os que, bem-aventurados, deixaram “obras valerosas”. Bem-aventurados como são todos os que vivem para a comunidade e não para sugar o tutano quente dos outros. Mesmo que esses outros não passem de carcaças ambulantes de nós mesmos. Esqueletos bambos dançando na música das tempestades. O que restará, se alguma coisa restar, será uma caricatura do que fomos, uma imagem tão baça, tão disforme, tão distante, que muitas vezes nós próprios não nos reconheceríamos nela. Porque nem aquilo que fazemos das coisas é obra nossa. Tornamo-nos nos outros, num todo homogéneo, uma amálgama de entes estranhos entrelaçados pela sua ausência, manipulados por gerações com formas de interpretar diversas daquelas que nos enformaram e levaram a ter comportamentos e ideias, a criar, que deixámos como rasto de vida. Pegadas que o tempo apagou: restam apenas retratos a sépia crónica. O futuro não será mais do de um passado requentado e desconhecido. Ninguém nos reconheceria se voltássemos um dia ao convívio dos que nos sucedem. A criatura é sempre mais duradora que o criador. O próprio criador se transforma em criatura quando olhado de fora enquanto produtor de inovação. As criaturas universais tornam-se obras de construção universal. Obras coletivas que anulam o artista. Ou melhor, integram-no naquilo que o fez capaz de criar a coisa cultural: os arquétipos profundos criadores da humanidade. Aquando da gestação, a criatura está geneticamente condenada à condução guiada do escopo do criador. Guiada pelos genes e pelos intrometidos, arquétipos. Uns, inscritos no ADN, que individualizam, outros, tatuados na psique, que universalizam e destroem a concepção de autoria. Só os loucos podem escapar a este determinismo genético e social. Só os loucos poderão caminhar pelas bordas do precipício, exibindo o riso da eternidade, escarnecendo dos prisioneiros que navegam nas águas turvas do esquecimento.

Não, não há fuga à gadanha final. A morte sempre vence.

Vítor Gil Cardeira

in “Poética do Tumulto”, edição Traça - Editora e Ermo"

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publicado às 17:33

As portas impossíveis do paraíso

por vítor, em 03.06.24






 



São muitas as portas que dão entrada ao paraíso, estreitas, mas muitas. Estão todas fechadas. São portas sólidas e cada uma tem a sua própria chave. Tens acesso a todas as chaves. Elas brilham nas tuas mãos, perante as fechaduras cegas, enquanto escolhes uma para tentar acertar na devida porta. As chaves parecem todas iguais, mas cada uma serve a uma e a só uma porta. Sabes que depois de experimentares uma delas nunca mais a poderás usar pois não a conseguirás extrair da fechadura tentada. São tantas as portas que não te importas que algumas se tornem inacessíveis. O verdadeiro problema é que para tantas portas só existe uma chave. E não terás, certamente, tempo de vida para experimentar todas as chaves. Os matemáticos saberão, com os seus cálculos e fórmulas, as probabilidades de acertar na porta certa. De quantas tentativas terás que precisar para conseguir abrir uma. De quanto tempo vais precisar para teres a sorte de escancarar uma porta para o paraíso. Até, e isto com a ajuda dos psicólogos, como cresce a ansiedade à medida que as chaves, as tuas chaves, outros terão as suas, se vão cravando nas fechaduras erradas. Mas, garanto-to eu, que já renunciei ao paraíso em vida, e, sobretudo, depois da morte, que o que te motiva, o que te empurra enraivecido, até, é o desejo de abrir todas as portas de forma a que as fronteiras entre inferno e paraíso se desvaneçam como neblina ao Sol de verão. Mas para isso, sabe-lo bem, precisavas de abrir todas as portas.














 

 

 







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publicado às 17:32

Podes Sempre Voltar Atrás

por vítor, em 03.06.24

 



Se me dissessem que a minha primeira casa seria uma gaiola dourada de pássaro canoro, o resto do meu dia seria passado a roer as grades dessa tão bela e cómoda casa. Sendo expectável que o aço resistiria aos meus dentes, nada mais aceitaria que se comesse, de forma a me tornar tão magro que pudesse atravessar o vazio das barras metálicas. Os pilares do que em mim se erguia! E se, mesmo assim, prevalecesse o frio da prisão imaginada, e se ao meu corpo escanzelado não fosse permitida a ausência do espaço a que, sem ter consciência do poder da música residencial, me acomodara, ousaria então a escapatória restante e final: montaria o cavalo selvagem da imaginação, sulcando a galope por entre vagas doutrinárias e sereias compreensivas. Quando a aspereza do ar, saturado de ameaças e alegrias, me fizesse tombar do equino, seguiria, então, o novo caminho. Nada do que vira antes me rodeava os passos. O espanto comovia-me e chorava. Ria, até. As bermas flamejantes do sonho que empreendera conduziam-me eufórico, ataráxico e vazio, bebendo tudo o que de belo a pradaria sem fim me oferecia. O que em mim olhava os passos de antanho, contemplando os dias sombrios da eternidade acumulada nos ossos dos transeuntes, apenas observava o pássaro doente na gaiola de fogo e sangue. A canção escapava-se no crepúsculo do entardecer e as asas da ave rocegavam o pântano fumegante. No desespero da dor, voltaria atrás. A liberdade amaldiçoou os meus dias e juntei-me a quem das trevas poderia criar luz.

Um pássaro que finge poder voar no vento cansado!

 

Cativa, 21/2/2024   in, Espúria

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publicado às 17:29

O novo não tem chagas

por vítor, em 03.06.24

 

Quando me disseram que tinhas ressuscitado, compreensivelmente, e embora o desejasse ardentemente, tende piedade, não acreditei e disse-vos que só o creria quando introduzisse um dedo das minhas impuras mãos numa das Suas chagas.

Quando me disseram que passeavas pelas ruas de Jerusalém, mais vivo do que os muitos que vivos te seguiam, aproximei-me a medo e disseste-me:

Anda, Tomé, vem ver O que ressuscitou, O que voltou da morte. Que deixou a frieza da pedra para respirar o ar puro da Palestina. Que deslocou a laje que O cobria com a força do desejo do Pai.

Caminhei para perto do Homem, do Amigo, que acompanhara pelas pedras e poeiras dos caminhos da Galileia e furei pelo meio da multidão ensandecida. Que falavas como quando nos conduzias antes, e parecias O que tinhas sido, não haveria dúvida nenhuma, mas das cinco chagas, de onde tinha visto escorrer da cruz o escarlate e morno sangue, nada vislumbrei. Na cabeça luzia uma fronte cobreada, bela e invicta. Do aro de espinhos nada restava que me aprouvesse observar. Cheguei-me mais perto ainda, e acariciei o teu peito nu e limpo. Olhei-Te demoradamente o corpo jovial e belo. Os pés. As mãos. Nada vi que me pudesse fazer crer no que me tinham dito. E fui-me dali chorando incréu e desolado. Só.

Quem contraria as leis da vida e da da morte vem nascido de novo como se de mãe virgem tivesse sido anunciado.



Cativa, 8.4.24

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publicado às 17:27

A Utopia Divina

por vítor, em 03.06.24
 

O que os homens criaram usando as palavras dos deuses foi um território pejado de utopias. Utopias divinas. Vivendo os humanos realidades cruéis, indomáveis e instáveis, os deuses oferecem um cenário alternativo, apelativo, prometendo um fim moralmente justo, agradável e duradouro, a perseguir e, ao mesmo tempo, desenharam abismos à beira dos penosos, sinuosos e apertados caminhos da salvação. Os problemas, geradores de ansiedades e dores ainda mais excruciantes, surgem quando te desvias e resvalas pelos barrancos abaixo. Enquanto as feridas se vão abrindo no corpo que rebola, aos trambolhões, numa agonia sem fim. Nenhuma ferida irá cicatrizar: quando o processo se inicia, nova crista do acidentado mergulho, irá esfacelar a chaga exposta. Fossem os deuses os avaliadores dos caminhos abençoados propostos e, seguramente ninguém, nem os mais ambiciosos e corajosos dos crentes, chegaria a salvo ao destino derradeiro. Sendo alguns homens, em representação do poder divino, que não vem a ser senão um poder autorrepresentativo, os responsáveis pela triagem, não existe imparcialidade possível. Mas, também nisso se pode ver a omnipotência de Deus: ninguém poderá deixar-se julgar pelos pecados cometidos, quando o criador dos impedimentos e dos tabus é a mesma criatura que os julga. Ou seja, quanto mais o homem se apodera do mecanismo que superintendem as leis divinas, paradoxalmente, maior é o poder de quaisquer divindades. Que não existindo, a não ser enquanto criatura cultural, se apodera da justiça, da moral, e mesmo, da ética que os seres humanos têm vindo a tecer com as linhas e o pano postos à sua disposição pela natureza. Pelo algo e pelo nada. Materiais que vão gerando uma outra natureza, sempre em dialética conturbada e, por vezes, mortal. A cultura constrói-se, quase sempre, contra a natureza. E se algumas vezes isso faz sentido do ponto de vista dos homens (uma barragem contraria a seca, um implante dentário revela-se, funcionalmente e em termos estéticos, de grande utilidade, ou o fabrico de papel destrói e baralha o coberto florestal), outras vezes constitui uma pura inutilidade ou, mesmo, é uma afronta aos equilíbrios ecológicos e à própria sobrevivência do planeta, como tão bem estamos a constatar nesta nova era do Antropoceno.

Curiosamente, nesta corrida desenfreada para os abismos reais das alterações climáticas, é Deus que continua a faturar. Que continua a impor-se ao seu criador. E é só ver a força crescente dos negacionistas da ciência e da razão que proliferam como cogumelos em estrume de cavalo. Sobretudo nos países mais poderosos. E, neste paradoxal cenário, nesta contenda mundial, em que se digladiam o obscurantismo e a razão, Deus conduz o seu rebanho feliz, e furioso, para o Armagedão.

Cativa, 5 de setembro de 2020

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publicado às 17:21


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