A cena literária nacional é tão pequena, tão circunscrita, que, quando te pões a falar mal de alguém, se te descuidas, já estás a falar mal de ti próprio. E, para teu alívio, e espanto, isso sabe-te tão bem!
A literatura deixou de servir para inquietar ou contaminar. Sabemos, no entanto, que os agentes literários, leitores, escritores, editores, livreiros, críticos, entidades oficiais e oficiosas, premiadoras do mérito e do demérito, formatados pelas correntes redutoras dos meios artísticos, ao menor desvio da regra não inscrita, do caminho já pisado, fremem de indignação e malham
nos que se atravessam nesta estrada da inquietude oficializada e canónica.
Nada há de mais perturbador do que um sujeito em contramão na
autoestrada. Nadando contra a corrente do rio grosso e manso.
O novo escritor será um mártir literário. Não lhe bastará a pobreza e a inutilidade das escritas, ainda precisa de ser maltratado por leitores, pares e críticos. Quanto mais desconsiderarem e rebaixarem a sua escrita, mais feliz se sentirá. Como a um mártir, o castigo só reforça o martírio: curiosamente, e a cultura judaico-cristã-islâmica é terrível e exemplar nestes domínios do martírio, castigador e castigado, escritor e leitor, retiram prazer do castigo.
Quando alguém elogia o escritor, por caridade, dever ou admiração, vê-lo-emos a planar, sem chão, vazio e aparvalhado. Quase sempre, enveredará por outros caminhos que se afastem da bajulação do leitor: o leitor é, continuará a ser, por incrível que pareça, a medida de toda a escrita.
Criador e criação, sendo um outro e outro um, numa dança sem fim rodopiando convulsivamente ao som de uma música gravada a fogo na memória coletiva da humanidade. A lassidão das peias deterministas, que libera loucos e dementes das pesadas correntes do determinismo social, faz destes os potenciais inovadores mais fecundos de entre os criadores. As obras de ponta serão o resultado, cruel e vazio, de mergulhos, em apneia, de pescadores descomprometidos no profundo e vasto inconsciente. Pescadores
sem rede, de pérolas inúteis.
Tudo o que fazes se liberta do que somos. A autoria é sempre uma obra coletiva sem autor. Inimputável. O que a IA nos vai trazendo, aos trambolhões, não é senão o acentuar e adensar deste pastoso manto que vai transportando e moldando a nova literatura. Resta-nos a voz. A voz que a tecnologia nunca encontrará.