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estranha luz

por vítor, em 09.05.23
Há uma certa e estranha luz que incide nos corpos nos finais do inverno e impõe neles uma dor antiga, vinda do fim dos tempos, que ninguém consegue explicar. Depois, quando os dias crescem e as noites deixam de assustar os pássaros, e as flores rebentam as cápsulas prenhes, soltam-se as vestes e os jovens riem sem conhecer o porvir. Nessa nova claridade dos dias maiores, os velhos viajam como se o passado fosse uma terra prometida.

As sombras não calam as vozes que iluminam as vidas de quem amanhece todos os dias. É um engano meu amigo. A aurora é um resgate impossível do nada. Dançamos como pedras antigas. Somos o rodopio do vento burilando o tempo.

Tavira, 2 de fevereiro de 2023

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publicado às 01:08

Rio da Morte

por vítor, em 09.05.23

O pus que escorre desta ferida aberta inicia o rio. Onde começa a dor de me tornar velho. Sim, na ferida aberta, a nascente deste rio sem esperança, a viagem cansada por terras estranhas, traga a planície lenta em meandros de sangue azul cobalto desenhando veias e artérias rompendo a pele. O mar imenso da morte espera a corrente que o procura. Tudo desliza para o mar sem fim. Tudo se despenha na renúncia de continuar. É desespero e sapiência a torrente de lama que arrasta os últimos a sorrir. A cobarde morte esconde o trabalho intenso dos vermes devorando a carne devoluta. A podridão da vida.



Oceano emético de pus iridiscente, lavoura sanguinolenta castrando os antigos temores a deus. Nebulosa opaca ardendo no fim dos dias, atraindo os ossos dos defuntos ao abismo das árvores petrificadas, onde o vento range nas folhas tatuadas pelo verbo insano, verborreia inútil no clamor do silêncio. A morte sempre vence as desvalidas carcaças nauseabundas, envergando os paramentos dos profetas fraudulentos como são todos os videntes encartados.

Quando o rio se perde na lagoa que engole a vida, os patrões da noite sem memória atingem orgasmos monumentais roçando o renascimento das almas eméritas. São portas sólidas as que te oferecem para arrombar.

16/17.2.2023

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publicado às 01:07

heróis de antanho

por vítor, em 09.05.23

Se a superação do que julgavas impossível te levar ao trono dos heróis de antanho, podes acenar do alto dos teus sonhos aos que te precederam na cruel jornada.

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publicado às 01:06

Cantando o vazio dos dias

por vítor, em 09.05.23

Queria cantar eventos grandes, dignos de um aedo, mas na minha vida tudo o



que tem acontecido tem sido normal e indistinto. Os meus cavalos mastigam romãs enquanto viajo por pensamentos ignóbeis. Quando vejo o futuro vir ao meu encontro, reparo nos dias inúteis que me esperam. São todos dias sem memória e que se não fossem vividos nada acrescentariam à triste vida que prossigo. Se fosse um homem habilidoso, poderia editar o futuro e transformá-lo a meu favor. Os meus cavalos gostam de romãs. E ouço-os ruminar a carne granulada, sorrindo ao tempo que passa. Se parasse agora, diria que a minha vida não teria valido a pena, mas isso só o sei agora. Não poderia agir sobre nada, como não se pode editar o que vai acontecer sem o conhecer. Agora, que encaro o futuro como se fosse o presente exposto num ecrã à minha frente, posso acreditar na sua manipulação, na possível mutação dos dias inúteis. Poderia, até, tornar muitos dias em dias interessantes e memoráveis. Dias sem história que se pudesse contar aos amigos depois de os ter vivido. Com gargalhadas de gente solitária e ensimesmada. Gente feliz com futuros radiosos resvalando para abismos perplexos. Multidões ululantes construindo felicidade à medida, para todos. Dias repletos de eventos excecionais. Momentos de alegria e paz, de ódio e iniquidade, como são todos os que ficam na consciência coletiva da humanidade. O meu futuro será o meu passado. Continuarei, com a tristeza dos dias comuns, a criar cavalos. As romãs que os equinos devoram livrar-me-ão da insuportável imortalidade.



26.02.2023

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publicado às 01:03

...

por vítor, em 09.05.23

O poema nem interroga, nem responde: o poema é um resgate impossível do nada.



O poema nem interroga, nem responde: o poema é um resgate impossível do nada. Uma porta aberta para o vazio. Ainda antes de ser dito, já fede a cadáver santificado. Antes de escrito revela já a cicatriz que o devora. Só o poeta desconhece a inutilidade da criatura neófita. Tudo o que resta dessa criatura será um rasto de sangue e sombra. Uma cicatriz feita estrada que nos conduz e oprime: um desfiladeiro de dor, grito, escorrendo para a noite. Sentado nas bordas do penhasco, o poeta crê que as acelerações da corrente são o resultado da força impagável das palavras. Varado pelo destino entontecido, perecerá.



março de 2023, Cativa

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publicado às 01:01

Na noite a sua foz

por vítor, em 09.05.23

Se um rio transporta a tua indelével solidão, é na noite a sua foz. Muitos levarão candeias para te procurar. Sem saber que é na luz que se esconde o olhar suspenso das sombras.

Não podemos esquecer o fluir dos dias isentos de dor, inúteis e de efeitos secundários maléficos. Não podemos deixar de saudar os que confortáveis navegam à boleia da corrente.

- adeus amigos, tornaremos a ver-nos no passado! Abracemos o que nunca conhecemos. Adeus!

É então que surgem na paisagem inclemente os indigentes palavrosos exibindo roupagem já gasta pelo futuro. Mentem com a sabedoria misteriosa dos bichos acantonados na tua cabeça. Rompemos a fina película das imagens e atravessamos para o interior desconhecido apenas acessível a quem já morreu.

Pela estrela irregular que o corpo rompeu na citoplásmica fronteira, a luz ilumina as trevas onde navegarás o passado irrecuperável. A quietude dos teus sonhos é um resgate impossível do amor.



Cativa, 21.03.2023

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publicado às 00:57

...

por vítor, em 09.05.23

Vivemos tempos confusos, difíceis e cruéis, em que tudo parece não ter sentido, tempos como são todos os tempos. Só a morte nos livra de todos os tempos! A morte e alguma embriaguez enquanto vivos.

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publicado às 00:56

La liberté du Chien

por vítor, em 09.05.23






Enquanto passeio o meu cão, vamos sempre falando em francês. É um hábito que temos desde há muito: eu em voz alta, deliciando os transeuntes que connosco se cruzam (coitado, nem animal o salva); ele sem emitir som algum: parle avec les yeux. A vida dos cães não é muito diferente da dos homens: cheirar merda nos caminhos, o cu dos seus semelhantes e mijar por todo o lado marcando território. Até uma trela nos conduz pelos destinos que trilhamos. Quando cheiramos um osso, somos capazes de esgravatar a terra e desenterrá-lo mesmo a grandes profundidades. A terra e as pedras esgravatadas atiradas para cima dos outros, cobrindo de pó as superfícies. Sujando quem se atravessa. Viens! Ne me quittes pas! O meu cão é teimoso como uma pedra. É quando tenho pressa que ele mais se aprimora na sua atividade arqueológica. Chega mesmo à arte da espeleologia. Se lhe desse tempo chegava à Nova Zelândia. Às vezes, tenho que ser bruto e puxo-lhe a trela com força. Esganando-o. Tu me emmerde, chien! Olha para mim com os seus olhos tristes de incompreensão e faço-lhe umas festa como que a pedir desculpa. Mon ami. Escusez moi! Quando era novo, o canídeo, andava à solta pela quinta e pelos campos em redor. Era feliz! E eu também: porque o via feliz e porque não tinha que o passear pela trela. Só que, como seria de esperar para um humano medianamente inteligente, cão à solta igual a problemas à solta. O malandro começou a frequentar quintas vizinhas com galinhas livres e a trazê-las para casa. Quer dizer, a trazer as suas carcaças. Um dia a minha mulher tropeçou numa metade de galinha à porta de casa. Partiu os dois dentes da frente do maxilar superior e a brincadeira custou-nos para cima de quinhentos euros.Outra vez apareceu-me a GNR em casa com uma queixa de um vizinho que tinha sido perseguido pelo Matrix na sua zundhapp. E, o que determinou a sua vida futura, foi a cena bíblica com que me deparei um dia quando cheguei a casa depois de um duro dia de trabalho: uma mulher gorda, enorme, de grande chapéu de palha, esperava-me com uma galinha gigante pendurada numa mão, enquanto com a outra geria os saltos raivosos do animal, com um valente cajado sem moca. Lá acalmei o cão, arretez toi, tais toi!, e a mulher com uma nota de 20 euros. Era galinha do campo e já estava encomendada na cidade. Ainda ponderei pedir a demonstração da prova do crime, mas, conhecendo bem o criminoso, achei por bem não o fazer. Conflitos com vizinhos são o pior dos infernos da vida no campo. O próprio homem da mulher da galinha, disse-mo um outro vizinho, já tinha ameaçado dar "um tiro no cão e outro no dono". Uma tarde, já bem tarde, depois de desaparecido por três dias, o pobre animal, chegou a casa, desorientado e em pânico, com uma corda atada ao rabo com meia dúzia de latas dependuradas. Tive que tomar decisões drásticas e, quanto a mim, acertadas: criminoso em prisão preventiva, de factum perpétua, no quintal, e longos passeios pela quinta com a caçadeira do meu avô ao ombro. Não disparava, a dita, um tiro há mais de 50 anos, mas isso só eu o sabia. O presidiário era contemplado com dois passeios diários pela trela. Exigia-os quando chegava a hora e parecia tão feliz quando passávamos a portada retentora que me parecia mais feliz com esta nova situação do que quando era totalmente livre. A liberdade a conta gotas torna-se num vício definitivo. Continuámos, é claro, a conversar na língua de monsieur de La Palice.












 

 

 


 



 




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publicado às 00:55

Políticos

por vítor, em 09.05.23






Os políticos estão-se a tornar, cada vez mais, naquilo que o povo, seja lá o que isso for, acha que eles são.












 

 

 


 



 




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publicado às 00:54

o vento sopra de frente

por vítor, em 09.05.23

Não há como sentir a animação que vai lá para trás. O vento pela proa torna-nos mais fortes. Mais eternos!

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publicado às 00:52

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