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Uma das mais importantes conquistas do artista, e relevo sempre, na minha modesta opinião, que o artista é igual a qualquer outra pessoa, e que qualquer outra pessoa pode ser, já o é em bruto, um artista, é a sua voz. Não é suficiente, mas é, seguramente, condição necessária. Só quando o artista é possuído pela sua voz, se torna um criador singular. E um artista!
Como podemos facilmente constatar, hoje, e em todos os tempos, os que campeiam na praça usam, e alguns abusam, das vozes de outros. Brilham, muitas vezes sem dar por isso, e orgulhosos disso, dessa voz, nos salões, exposições e concursos, por esses campos afora.
Muitas vezes, quase sempre eles, ganham prémios e mordomias. Muitas vezes com vozes extraordinárias. Só que são vozes extraordinárias de outros. Um "plágio" subliminar, difícil de provar e, por isso, legal.
Circulava há muito pela família, já alargada pelo tempo, que um antepassado nosso, dado, como parece a genética nos ter amaldiçoado, ou agraciado, como referem alguns, diga-se de passagem e em abono da verdade, a deambular pelas cinco partes do mundo, em viagens pelas arábias, se tinha apaixonado por uma princesa árabe. A paixão foi correspondida e, vá-se lá saber como, os pormenores, ou melhor, os por maiores, de tão desigual e complexo matrimónio, não acompanhavam a narrativa familiar, casaram e foram muito felizes. A princesa era herdeira de uma fortuna colossal, dizia-se mesmo: incalculável. Quando o sogro do nosso aventureiro feneceu, foi parar, e aqui não se sabia em que percentagem, ao amoroso casal. Acontece que a formosa e rica esposa morreu jovem e de forma inesperada, deixando a fortuna, por falta de descendência, ao inconsolável e desesperado esposo. Talvez por precaução, uma estranha e perturbadora cláusula acompanhava a fabulosa herança: só seria herdada à quinta geração do imprevisto milionário.
Ora o protagonista desta história voltou ao nosso país, constituiu família, ganhou outros dinheiros, faleceu e deixou descendência, mas o dinheiro da herança árabe ficou retido num banco que, dizia-se, iria à falência se esse montante indeterminado fosse de lá levantado. Na tal quinta geração. O tempo foi passando e as dúvidas entre gerações passadas foram baralhando os descendentes e, até, fazendo esquecer, ou pior, ridicularizar, a gigantesca fortuna. Já ninguém sabia precisar quem seria dessa tal quinta geração. Eis senão quando Zé Catrina, parente do príncipe das arábias e crente na sua pertença à sua quinta geração, trabalhador rural, homem simples, mas letrado, viu num jornal, a que costumava jogar os olhos na taberna enquanto bebia umas aguardentes com os amigos, uma notícia sobre um tesouro que estava à espera de ser levantado pelos herdeiros lá para os lados do Médio-Oriente. Com fotografia e tudo. Um casal sorridente, onde lhe pareceu logo que o jovem lhe dava ares. Era a sua cara chapada! Não tinha dúvidas. Era a dita fortuna! Pediu o jornal à taberneira e meteu-se na camioneta a caminho de Faro. Da Conceição de Tavira a Faro são trinta e dois quilómetros. Foi sorrindo até ao destino final. Já se via rico e a viver como um nababo. Toda a gente lhe sorria. A viagem tinha como destino a casa do dono da quinta onde trabalhava, advogado de sucesso na capital do Algarve. Com o entusiasmo, voava na direção da casa do causídico. A pressa não costuma ser boa conselheira. Não se sabe bem como, viu-se a cair na doca de Faro, mesmo em frente ao Hotel Eva. Com coragem e ânimo nadou com um braço, enquanto com a mão do outro erguia, como o eterno poeta, o jornal bem acima das águas da Ria Formosa. Saiu pelo seu próprio pé da doca encharcado como uma galinha acabada de atravessar uma tempestade. Infelizmente, na queda inicial, o jornal mergulhou nas águas lodosas e palavras e imagens tornaram-se uma mancha impossível de descodificar. Voltou a casa desolado.
Ao final da tarde, no ritual das aguardentes na tasca, já mais animado, contava aos seus amigos as suas aventuras. "E ali estava eu todo vestido, com sapatos e tudo, nadando com uma mão e a minha fortuna bem ao alto na outra".
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