A alfarrobeira sempre foi, e será, a árvore da minha vida. Pela sua independência e beleza. O que mais poderia querer um ser humano que independência e beleza? Quase tudo o que interessa cabe nestas duas categorias: até a morte: há mortes independentes e belas. Mas, como em tudo o que nos é imposto, e é este o caso mais impressionante de impostura vital, pouco temos a manobrar e a, sendo moderno, spinar, de forma consciente e autónoma, no grande e incandescente espetáculo do fim. E, paradoxo da vida, encenação tão mais extraordinária quanto mais cruel e prolongada. Como a arte, fluxo energético mecanicamente potente e cruel, que se injeta nas cicatrizes purulentas, infetando de dor e sofrimento as margens onde a vida se alimenta deste veneno fatal. A vida e a arte digladiando-se em contendas sem fim nos apertados labirintos dos desfiladeiros que nos conduzem. A arte é o que verdadeiramente se opõe e contradiz à vida: a arte é o apogeu da vida e, só como o afirma o hipocondríaco Nietzsche, o suicídio constitui a verdadeira prova de coragem do ser humano - e, acrescentaria eu, curvando-me em humilhação cenotáfica perante o mestre, da humanidade. A escolha constrói-se, sempre, dentro do que nos resta de independência. É a única liberdade a que podemos aspirar enquanto seres dependentes e escravos da biologia e dos arquétipos reacionários que nos peiam e sufocam.
Como nós, imperfeitos e arrogantes, as alfarrobeiras erguem-se do solo, das irregularidades da imersa rocha mãe, preferindo, estranhamente, as sedimentares às vetustas ígneas, exibindo uma figura imponente, altiva, mas séria. Autofágica, alimenta-se das próprias folhas que continuamente chovem da sua copa densa e perene tornando a terra à sua sombra negra como a noite. Alimento notável de nutriência e saúde. A água, cozinheira do seu abundante alimento, é a que dos céus cai, rara e preciosa, nas idiossincrasias mediterrânicas, como o orvalho de verão, mas suficiente para quem vive nos equilíbrios frágeis da natureza que as enforma.
Como tudo o que é vivo, reproduz-se generosamente deixando às sementes, que os pássaros, que as amam e nelas constroem os ninhos, espalharão no território à sua volta; o alimento da sua preciosa vagem.
Não há sombra mais densa e fresca e agradável que a duma alfarrobeira durante o verão.
Um ser vivo digno e independente que o homem um dia irá vergar à condição de escrava, de mero ser vivo conduzido para a função derradeira de produzir, em fileiras intensivas e contranatura, alimentada à força, decepada para não crescer e violada por toda uma panóplia de químicos que a tornarão artificial, sem dignidade e... triste.
Deixaremos então de ouvir, nos barrocais do fim do mundo, nos dias mais quentes dos dias, os seus roncos medonhos, quando se liberta de partes de si, em rituais inexplicáveis, de possível purificação e rejuvenescimento.
A vida humana desencontra-se das vidas das alfarrobeiras e torna-se raro assistir à morte natural de uma delas. O genocídio a que têm sido sujeitas nos últimos cinquenta anos torna-se, por isso, mais cruel, mais indigno e injustificável.
O Algarve não será o que foi sem estas companheiras de antanho.